Casa Butantã, 1964. Planta primeiro pavimento.
Entre 1964 e 1970, Paulo Mendes da Rocha construiu quatro casas que questionavam a própria ideia de habitar. Casas Mendes da Rocha, Luiz Gonzaga Cruz Secco, Mario Masetti e Fernando Millan. As obras exploravam radicalmente o programa do espaço habitacional como desdobramento da cidade e da rua. O arquiteto sintetizaria mais tarde essa investigação: “Não existe um espaço privado, mas graus diferentes de espaço público”.
No projeto de sua residência no bairro do Butantã, em 1964, quatro pilares (sempre quatro pilares) arrancam um volume de concreto bruto do chão. A força dessa elevação é tal que o terreno também se ergue para conformar uma nova topografia – procedimento depois recorrente em suas obras, a própria ideia de construir uma segunda natureza. A geografia construída do terreno conforma também uma abertura no talude (a entrada) e o térreo se transforma em uma praça coberta em contínua relação com a calçada. Esses pequenos morros aludem a um dique para contensão das águas do Rio Pinheiros em dias de enchentes, quando transbordam para aquelas regiões de várzeas. Os quatro pilares viram palafitas.
No andar superior, as paredes são apenas esboços de separação programática dos ambientes. Não chegam até o teto, tem frestas, mesmo nos quartos e banheiros, vazando odores e sons. O espaço habitacional é tratado então com um lugar único, onde não há lugar para pudores privados. A arquitetura se torna um elemento ativo de questionamento dos padrões de comportamento familiares burgueses. Para dentro da casa se transfere as formas de relacionamento próprias dos espaços públicos, como se o arquiteto reafirmasse o carácter urbano do problema habitacional e também lançasse luz para as origens históricas disso.
Casa Butantã, 1964. Corte.
No terreno vizinho a sua residência, para a Casa Luiz Gonzaga Cruz Secco, Paulo repete a mesma solução, exprimindo a dimensão prototípica dessa arquitetura. A casa deve e pode ser repetida, não é uma solução única para um terreno único. Pelo contrário, esses projetos nada mais são que o primeiro andar de uma torre habitacional, no qual a planta do primeiro pavimentos seria empilhada.
Na Casa Masetti (1967), no bairro do Pacaembu, o traçado da rua continua para dentro do terreno. A curva do viário se bifurca para dentro do lote e cria uma verdadeira esquina urbana. Os muros entre o interior e o exterior, entre o público e o privado, entre o individual e o coletivo, são derrubados. Para reafirmar essa continuidade entre o terreno e a rua, o arquiteto utiliza um piso asfáltico no térreo. Esse piso é livre, como pilotis corbusianos, novamente erguidos por apenas quatro apoios – o mais simples, o mais elementar. Surge uma estranha e escura praça. No segundo andar, não há corredores: o programa é articulado pela sala, para onde se abrem as portas do quarto. Não há espaços de mediação, vestíbulos que separem as áreas privadas e coletivas. Novamente o espaço é tratado de forma contínua.
Casa Masetti, 1967. Planta térreo e primeiro pavimento.
A Casa Millan (1970) parece ainda um passo mais radical nesses questionamentos de Paulo sobre as limitações da vida privada. Distribuída em dois andares, a sala é uma espécie de palco central de um teatro de arena, circundado pelos quartos. A vida urbana se desdobra na sala, de forma monumental e cinematográfica. A diluição da individualidade e dos costumes burgueses ganha assim dimensão teatral, performática no dia-a-dia. Com a Casa Millan, Paulo reafirma que as relações privadas serão alteradas e isso será feito de uma maneira monumental.
Apesar da divisão entre dormitórios e o estar em diferentes andares, assim como na Masetti e na Casa Butantã, os quartos não tem privacidade e nem mesmo os banheiros, que originalmente tinham janelas dando para a cozinha no primeiro andar, em uma espécie de átrio dos fundos. A própria iluminação natural da sala vem de um rompimento da laje de concreto da cobertura, filtrada pelas sequências de vigas de concreto a conformar uma pérgula cênica. No centro da sala, uma escada escultórica evidencia a espacialidade do pé direito duplo. Esse elemento e a própria parede curva da sala demonstra o desprendimento do arquiteto em contemplar valores rígidos do racionalismo. Traços de Niemeyer escorrem por lá.
Casa Millan, 1970. Planta térreo e primeiro pavimento.
Dissecando o modo de vida das habitações, Paulo consegue decantar a arquitetura residencial para aquilo que é mais essencial. Caem elementos barrocos, as ornamentações arquitetônicas e comportamentais. Sobra apenas uma estrutura de concreto pura, a cumprir sua função de abrigo, de habitar. Mas um abrigo que se afasta da noção de refúgio e aconchego. É um lugar de desconforto, de desafios sobre os padrões contemporâneos. O lugar privado também se torna um espaço vivo onde a rotina é coletiva, aliás, onde o próprio conceito de rotina parece se diluir; onde não há espaço para a privacidade, para o individualismo e para os pudores burgueses.
Com isso, Paulo parece sugerir um retorno a ideais pré-modernos, quando a divisão entre o quarto privado e as áreas coletivas ainda não havia sido formatado pelos costumes vigentes. Comia-se do mesmo prato, habitava-se o mesmo lugar. Isso é mais essencial para a vida. Um teto, que na sua existência e na relação política entre os moradores possa também construir uma cidade. Há uma contradição aí, uma dialética que expõe a própria crítica sobre os sistemas de produção: sendo radicalmente moderno, Paulo acaba por formular um modo de vida pré-moderno em seus projetos, isso é, pré-burguês.
Essa contradição não seria a mesma que os moradores dessa casa são desafiados no cotidiano? Como habitar um lugar que pertence aos costumes de outro tempo? Como um projeto pode romper os comportamentos burgueses dominantes sendo ele mesmo habitado e inserido nesse contexto, tendo emergido desse ambiente? Como questionar a ideologia sendo você mesmo parte dela? Parece uma relação dialética hegeliana tradicional. Esses espaços são transformadores, mas podem esbarrar na própria impossibilidade de sua realização contemporânea, na sua impossibilidade, sobretudo, de universalização. A força desses quatro projetos (construídos!) de Paulo está aí, no embate – a primeira vista insolúvel – entre a arquitetura e os padrões de nossos tempos.
Gabriel Kogan, 06.05.2016
Casa Butantã, 1964. Foto quarto e banheiro.
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Arquitetos, ativistas e pensadores das cidades se ocupam hoje com a autoprodução dos espaços públicos como prática emergente do urbanismo; mas – vamos falar sobre economia política – como essa atuação se insere no desenvolvimento capitalista das cidades?
As diferentes nomenclaturas (algumas com ares subversivos como urbanismo tático e guerrilha urbana) designam sedutoras práticas participativas e comunitárias de construção de estruturas leves com intuito de fomentar usos dos espaços públicos. Trata-se de uma redenção da cidade aos seus moradores ou do próprio canto neoliberal da sereia em forma de paletes de madeira?
Em 2004, o sociólogo brasileiro Francisco de Oliveira, analisando a questão habitacional do Brasil, questionou as atuações institucionalizadas de mutirões na construção civil no país[1]. O sociólogo mirou a dimensão econômica dessas ações, chamando a atenção para o rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho por meio do uso da mão de obra autogerida.
Em outras palavras, o Estado e os industriais reduziriam seus custos de produção de habitação repassando a responsabilidade pela mão de obra da construção (ou gestão do projeto) para os próprios moradores[2]. Estado mínimo, exploração máxima. Oliveira intitula o texto “O vício da virtude”, mas com um pouco mais de moral religiosa e menos cupinchagem poderia bem tê-lo chamado de “De boas intenções o inferno está cheio”.
O urbanismo tático é a própria autogestão e autoprodução, não mais da construção do espaço privado, mas do espaço público, onde a as contradições apontadas por Francisco de Oliveira se multiplicam, sobretudo, por não estarmos falando mais de uma questão urgente e de primeiríssima necessidade como a moradia.
O atual estágio do desenvolvimento capitalista das cidades assiste a emergência desse urbanismo tático de forma eufórica, como alternativa da inviabilidade do Estado em gerir seus serviços e bens, como suprassumo do neoliberalismo materializado em produção descentralizada da cidade. O custo de produção do espaço público está se externalizando.
As prefeituras são parte do espiral de débito público que sustenta a economia neoliberal. A palavra de ordem contemporânea das municipalidades é “reduzir gastos”. E dentro dessa lógica o custo de operação e manutenção dos espaços públicos representam porcentagens significativas[3].
Para olhos políticos desatentos, esses custos são passíveis de serem suprimidos ou drasticamente reduzidos. Melhor: externalizados para outros entes que vão arcar com as despesas. O Estado então se ausenta de sua responsabilidade sobre o espaço público, o próprio local da política. Estratégias de privatização dos bens públicos ou do próprio urbanismo tático caem aqui como uma luva.
Recentemente, a prefeitura de Paris da “esquerda” de Anne Hidalgo realizou o concurso Reinventer Paris, no qual disponibilizou 23 propriedades no centro da cidade para propostas financeiras e projetuais formuladas por consórcios compostos por arquitetos, técnicos e investidores.
Por trás das intenções de promover a nova economia com FabLabs, jardins comunitários e polos de criatividade urbana está a incapacidade da municipalidade de Paris não apenas de fazer novos investimentos públicos como também de manter as propriedades existentes. Projetos que requisitavam verbas da prefeitura eram considerados cartas fora do baralho; tudo deveria vir dos investidores privados, a arcar com os custos sobre as áreas. No Reinventer Paris, o Estado de não se eximiu totalmente de políticas de construção do espaço público, mas fez isso – de forma contraditória – privatizando bens[4].
O urbanismo tático é um estágio ainda mais sofisticado desse urbanismo neoliberal. Sem nenhum controle estatal sobre a qualidade e o objetivo dos espaços públicos, a autoprodução do espaço substitui a figura das empresas privadas pela “comunidade” ou indivíduos –ideologicamente difundidos como propositores do espaço público, mas que se mostram antes vítimas da externalização de custos da municipalidade endividada.
Portanto, não apenas o Estado se exime de investimentos e reduz seu tamanho (lembrem-se, Estado mínimo é um dos pilares do neoliberalismo) como também faz isso com total desregulamentação (outro pilar): o projeto em rede dá lugar a decisões separadas, sem a dimensão urbana, de pequenos espaços por grupos organizados dispersos.
Quando nos depararmos com intervenções desse tipo, seja no Largo da Batata em São Paulo ou em jardins comunitários em Nova York, é fundamental a pergunta: de onde vem o capital para essas atuações? A influência das empresas privadas reaparece no urbanismo tático de forma indireta, como organizadoras das “comunidades” ou como patrocinadoras das intervenções nos lugares que mais as interessam como marca. Mas, frequentemente, o capital pelas intervenções vem dos próprios cidadãos, que colocam fundos individuais nesses projetos “idealistas”, em uma externalização direta de custos.
A precariedade da estrutura institucional e financeira dessas ações se reflete na própria precária qualidade funcional e estética dos espaços construídos. Mesmo os materiais usados, por não virem de investimentos poderosos da máquina estatal (em teoria, a mais interessada na perenidade das intervenções), não são feitos para durar, não são suficientemente robustos. Mobiliário urbano implantado no Largo da Batata[5] por ações de urbanismo tático se mostraram, por exemplo, deteriorados poucos meses depois da instalação.
Por esse e outros motivos, o professor da Architectural Association de Londres, Pier Vitorio Aurelli, critica práticas análogas em um texto que traz no título a expressão “Architecture in the Age of Precarity” (arquitetura na era da precariedade). O autor adverte precisamente: “Fazer mais com menos é exatamente o que o capital demanda de nós: mais produtividade com menos bem estar, mais criatividade com menos segurança social, porque criatividade se torna mais produtividade quando nossas condições “dadas” crescem de forma mais intensa e instável”.
Por fim, ainda no campo da economia política, não podemos ignorar que o urbanismo tático tem sido sistematicamente desafiado pela palavra da moda dos estudos urbanos, gentrificação[6]. Em essência, essas ações não se distinguem do urbanismo tradicional: quanto mais capital é investido em determinada área, maior a valorização fundiária da região. A vantagem do urbanismo tático aqui é sua capilaridade e seu retorno eficiente para a gentrificação (por meio de atenção midiática ou “apoderamento” das pessoas com o lugar, “fazer mais com menos”).
Construir seu próprio espaço público; plantar uma horta coletiva em um terreno público antes trancado e difundir a ideia em seminários internacionais; produzir o próprio mobiliário urbano e levar a discussão para escolas de arquitetura. Todos esses são anseios a primeira vista animadores, imbuídos de sentimentos de mudança, mas a máquina do neoliberalismo é capaz de criar o que chamamos – precisamente – de ideologias (ilusões que privilegiam os detentores dos meios de reprodução do capital). Não há ingenuidade: de boas intenções até mesmo a cidade contemporânea está cheia.
Gabriel Kogan, 22/03/2016
[1] http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002006000100005#back1
[2] Se por um lado o mutirão pode contribuir para a desalienação do processo produtivo da casa e resolver emergencialmente a questão da moradia para os envolvidos; por outro, também acentua a exploração do trabalho ao corroer as horas produtivas do trabalhador. Além disso, espreme ainda mais seu exíguo tempo de lazer. Hora de lazer, hora de trabalhar no mutirão.
[3] Na cidade de São Paulo, por exemplo, as secretarias de “Coordenação das Subprefeituras”, “Esportes, Lazer e Recreação”, “Verde e do Meio Ambiente” e “Desenvolvimento Urbano” – responsáveis pelo planejamento urbano da cidade e construção/manutenção de espaços públicos – respondem por 14% do orçamento municipal em 2016 (ou mais de R$3 bilhões) . Exclui-se desse cálculo a “Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras” que faz, eventualmente, obras de espaços públicos. Por outro lado, parte da verba das subprefeituras, aqui embutidas integralmente, é destacada também para outros fins como a manutenção de vias e infraestrutura, além de aprovações técnicas.
[4] A regulação se realiza por meio de concurso público que julga tanto a melhor proposta financeira do consórcio (compra do terreno etc.) como também a proposta conceitual e arquitetônica.
[5] Nota-se que ações populares autônomas no mesmo lugar, como aulas abertas de forró não são alardeados como transformadores do espaço da mesma maneira, apesar de reunir números maiores de pessoas. Nota-se também que esse tipo de transformação usa o espaço público como suporte temporário de encontro, sem qualquer construção, há apenas a própria presença dos indivíduos no espaço público.
[6] Processo de expulsão de populações pobres e tradicionais de determinados tecidos urbanos em decorrência da valorização imobiliária gerada usualmente por investimentos – públicos ou privados – locais.
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Não existem critérios para a arte contemporânea. Assim fica fácil. Não há mais críticos, críticos são curadores, curadores contratados de galerias e de instituições, instituições dependem de verbas inclusive das galerias, jornalistas são amigos de artistas, artistas (e curadores) não querem receber críticas e todo mundo tem seu rabo preso. As exposições mostram qualquer coisa, o povo aplaude no Feice ou no jornal, seja para agradar os reis do poder, seja por falta de discernimento crítico. Ou medo.
Ingenuamente, imaginaria o Panorama da Arte Brasileira como uma visão sobre o cenário da produção contemporânea. Não pela primeira vez, o Panorama do MAM-SP (em sua 34a edição) se furta, justamente, de ser um panorama. O que temos é uma mostra ultracuratoralizada (ler texto anterior), na qual praticamente não há arte, e sim um discurso curatorial eloquente.
Se o melhor de um Panorama da Arte Brasileira são obras de 4000 anos de idade (resgatados como discurso pelos curadores) e, a grande estrela, um artista que domina o meio há 40 anos, bem… Há algo realmente errado nisso. Nada importa: a arte aqui é só um pressuposto para criar uma narrativa curatoralizada, para exprimir visões políticas e estéticas dos donos da festa. O Estadão – acertadamente dentro da lógica da mostra –, em vez de dar espaço para as obras, preferiu colocar fotos dos curadores.
(Parênteses 1, breve descrição da mostra): Duas narrativas se entrelaçam; uma composta por obras pré-históricas de povos sambaquieiros; a outra, uma sequência de artistas contemporâneos que dialogam com a questão dos sambaquis e suas analogias. Eis o texto curatorial, para ler isso de maneira mais pomposa: http://mam.org.br/exposicao/34panorama
(parênteses 2): Se a ideia das duas narrativas se mostra boa, ela falha quando só uma delas funciona (e em termos): as peças de 4000 anos, que fazem sentido aqui, essencialmente, como narrativa estética; não antropológica. Resta-nos, portanto, analisar qualitativamente a presença da arte contemporânea, que devia ser a estrela, mas parece que não foi convidada.
Impossível perdoar o começo do vídeo de Cao Guimarães com cartas para o curador adjunto da mostra. A aceitação da curadoria de colocar isso exprime um exagero internalizado (ninguém publica um e-mail sem autorização, aliás). A quem interessa a não ser aos próprios? O conteúdo das cartas é desinteressante. O começo (o começo é tudo, hein?) já afeta não apenas toda a obra como também a exposição. Podemos parar por aqui. Game over. Continuemos, com esforço.
Se o primeiro passo é um tropeço; o segundo, leva ao tombo. Miguel Rio Branco é um grande artista e errar é permitido (até desejável). Mas no conjunto da ópera, seu erro deixa outro gosto amargo. A recriação da flora dentro do espaço expositivo poderia compor uma experiência sensorial provocativa, mesmo com todo o ar de deja vu. Tudo se perde em cacarecos espalhados pelo ambiente (esculturas em pedra e outras coisitas más), parece um presépio. Se você tem uma ideia incrível; não tente ter outra, por favor. Ainda por cima, o espaço se mostra feio (nem tudo precisa ser belo, ok, mas…), sem proporção, com um forro descuidado e uma iluminação de padaria. É como a piada: médicos enterram seus erros, arquitetos expõe em praça pública. Já os artistas, aparentemente, mostram no Panorama.
Nada parece mais incômodo do que a presença de Cildo Meireles na mostra de 2015; um gênio, o maior artista brasileiro vivo. Agora, qual é a razão de colocar numa mostra como essa um artista que já produziu tanto, que conseguiu tudo na carreira, que teve exposições em todos os lugares do mundo? É de uma obviedade irritante. Deu vontade de subir o Pico da Neblina. Eu entendi: era uma obra que ele nunca tinha feito etc etc. Agora há um problema político aqui: não há mais ninguém para apresentar, bons artistas que querem ganhar seu lugar ao sol desesperadamente, não? Politicagem? Chamariz para publicidade? É mais e mais do mesmo e do mesmo e do mesmo e do mesmo.
O jogo continua e está 7×0 (não quero escrever sobre o resto). Mas teve um gol de honra, no fim. Fechou 7×1. O vídeo de Berna Reale; talvez a melhor obra da artista, com forte relação com sua história de vida. Berna aparece produzindo – sob medida, como uma alfaiataria – embalagens para mortos no IML, as roupas fúnebres – sacos pretos. O trabalho se relaciona de forma poética e literal (literalidade é necessária em tempos de discursos difíceis que nem estudiosos entendem) com o assunto dos sambaquis, onde os povos muitas vezes enterravam os mortos.
Talvez não sejam apenas os mortos que estejam mortos nessa exposição. Entre no MAM, vire a esquerda (“na direita, tem uns restos que não couberam na sala principal”, como dizem sempre por aí). Veja a coleção de arte pré-histórica ‘minimalistas’ (como experiência estética), veja o vídeo no fim. Uma grande exposição!
O fundamental desse Panorama – como nas mostras curatorizadas – é a criação da narrativa (a partir das pesquisas dos curadores); dizer que foi contada uma história seja-lá-qual-for. A qualidade dos elementos dessa narrativa é secundária. Se isso compõe o Panorama da Arte Brasileira, então que falta de panorama temos hoje! Que discurso hermético e ideológico. Daí fico me perguntando, essa “arte para quê?”.
Gabriel Kogan, 21.10.2015
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No jargão jornalístico, conteúdos editorados são aqueles que servem para exprimir a opinião política e pessoal dos editores. A apuração dos fatos sucumbe à construção de conceitos que representam os interesses (basicamente econômicos) da publicação. Nada de fatos, nada de investigação; apenas a opinião pré-estabelecida, o preconceito reproduzido. A Veja é um exemplo caricato disso.
E se levarmos essa patologia jornalística para a arte e falarmos em uma arte curadoralizada? As curadorias eclipsam a produção artística. O que prevalece é a visão pessoal dessa figura ambígua e hoje superpoderosa: o curador, juízes arbitrários da cultura contemporânea. As obras não se sustentam em seu discurso, nem em sua presença estética. É necessário conferir significado a elas – significado ready-made, como textos ultraexpicativos colados na parede e diagramados com tipografia impecável.
Não basta apresentar uma cadência de obras – irrisórias e que se fazem potentes por relações incipientes –, é preciso explicar a obra (com suas relações incipientes) tintin por tintin. Vender a ideia do curador, fazer da experiência de circulação pelo ambiente expositivo uma experiência essencialmente ideológica, no sentido mais forte dessa palavra. Nessas mostras curadoralizadas os textos não se atém a falar sobre a técnica ou fazer uma breve explicação de processos e origens. Esses textinhos são como tiros nos miolos: não pense, não sinta – mesmo para os observadores mais experientes, connaisseurs da arte. A versão oficial é essa. E vai dizer que a versão oficial não importa?
Não se fazem mais mostras individuais. A trajetória e o pensamento do artista exposto de forma sistemática não quer dizer mais nada. Não importa ao curador, às instituições à deriva do mercado: “não poderemos evitar que a maior e menor circulação de dinheiro tenha consequências no mundo em que vivemos”, blablablabla (o texto não acaba), simples, verdadeiro e fácil. Por que a arte contemporânea é tão reacionária? É a livre circulação (e haja liberdade, lava a seco) do dinheiro?
As mostras curadoralizadas são assim: tem texto explicativo para tudo, percurso lógico desenvolvido pelo espaço expositivo (e que faz questão de se mostrar como percurso), junção de artistas de forma relativamente arbitrária (poderíamos explicar isso por relações de mercado das instituições e por relações de poder pessoais do curador, mas isso é outra história), obras vazias sem sustentação por elas mesmas (dependem do vizinho que por sua vez depende do outro vizinho e que se apoia no outro vizinho… desabou), tem nome do curador para lá, para cá. Tem nome do curador inclusive em obra do artista em formato de carta com efeitinho de animação. Mas foi o artista que quis! Sim, artista que incorporalizou a curadoralização da arte e que se sujeita as regras estabelecidas de forma serviçal (e convenhamos, com um baita puxa-saquismo).
“O que você tem contra curador?” – ela me pergunta. Como certa vez disse um (bom, ainda existem!) artista que também é escritor: “parece um mal necessário”. Pois a boa curadoria tem uma pesquisa enorme, um esforço monumental, muitas horas dias anos décadas de leitura. Mas essa sofisticação desaparece no resultado final, sem arrogância, sem demonstrações egóicas. Senão estaremos relegados a curadoralização e não a curadoria, relegados a arte-Veja com seus grotescos excessos de discursos curatoriais. Fique quieto curador, deixe a obra. Usando outra citação aqui anônima: “atenha-se a sua insignificância”. No bom sentido. É claro.
Gabriel Kogan, 19/10/2015
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Faço aqui uma pequena retrospectiva de dez artigos fundamentais para entendimento da atual questão hídrica em SP.
1- O problema não é de agora: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2903200101.htm
2- A manipulação dos dados: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,pisa-na-sabesp-imp-,1621074
3- O posicionamento do terceiro setor: https://medium.com/a-conta-da-agua/ensaio-sobre-a-cegueira-hidrica-2759ec839c74
4- Direito a informação e grandes consumidores: http://apublica.org/2015/01/sabesp-se-nega-a-publicar-contratos-de-empresas-que-mais-consomem-agua/
5- Rodízio e redução de pressão são problemas, não soluções: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/01/1577040-sp-deve-mirar-curto-prazo-na-luta-contra-crise-da-agua-diz-pesquisadora.shtml
6- Os conflitos a jusante: https://medium.com/a-conta-da-agua/nao-beba-agua-beba-cerveja-815dfe9eb5eb
7- Os lucros estratosféricos: http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1078/noticias/nao-da-nem-para-racionar
8- O descaso político: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/10/1532662-cpi-sobre-falta-de-agua-e-teatrinho-diz-presidente-da-sabesp-a-vereador.shtml
9- Os prejuízos não são iguais para todos: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/01/1582054-possivel-rodizio-em-sp-vira-piada-em-condominio-sem-agua-ha-11-dias.shtml
10- Bastaria, ao menos, fazer o óbvio: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2015/02/nova-york-venceu-crise-de-agua-sem-gastar-muito-dinheiro.html
Gabriel Kogan, 16.02.2015
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Projeto de Saturnino de Brito para o Rio Tietê em São Paulo, 1926. Na planta superior, o desenho mostra a então configuração do Rio Tietê. A segunda planta é a proposta de Saturnino, onde a hachura verde escura representa áreas a serem urbanizadas. No desenho inferior, o engenheiro representa diferentes cortes transversais do rio.
Em 1924, o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito foi contratado pelo então prefeito de SP, Firmiano Pinto, para fazer um estudo para o Rio Tietê, um rio meândrico a serpentear pelas várzeas da cidade. Havia duas preocupações concretas – antagônicas, mas correlacionadas: (1) as enchentes que fustigavam os moradores das planícies aluviais e impediam a valorização dos terrenos das margens; e (2) os problemas com abastecimento que viriam a assolar a cidade, em breve, com 1 milhão de habitantes. Além disso, o carro começava a dominar o desenho das cidades e os próprios rios se tornariam suporte para as avenidas já que a topografia dos vales e planícies era propícia para largas autopistas de alta velocidade.
O experiente Saturnino – projetista dos canais de Santos – faz um projeto considerando os usos integrados da água (abastecimento, transporte, saneamento, energia, lazer etc). Mas ele incorpora também demandas ideológicas surgidas poucos anos antes: a criação de Avenidas Marginais ao longo do curso d’água e a necessidade de valorizar os terrenos lindeiros, até então destinados para as populações pobres que conviviam com enchentes anuais. De qualquer forma, ainda que muito longe de ser um herói para os rios de São Paulo, Saturnino é generoso com as águas e propõe uma retificação do Rio Tietê deixando-o com uma secção de 90 a 120 metros (imagem). Nas margens haveria parques com 30 metros de largura e avenidas, de cada lado cada, com 40 metros. Além disso, o engenheiro propõe estações de tratamento de esgoto e lagos para lazer e acumulação de água de enchentes em fozes dos rios, como no Tamanduateí.
O que está no centro do desenho de Saturnino são as águas urbanas. Mas o projeto dele não chega a ser executado, sem antes ser redesenhado em 1929 por outros dois engenheiro, muito ligados a política e interesses industriais: Ulhôa Cintra e Prestes Maia. A dupla transfere o cerne do projeto urbano; saem os rios e entram os carros. O novo desenho estreita o Tietê para 70 metros, retira os grandes lagos, amplia a importância das avenidas marginais, esquece das estações de tratamento e parques lineares. Mais do que isso, o Tietê é inserido dentro de um projeto urbano de grandes avenidas, que se sobrepõe aos mais importantes rios de São Paulo. Esse novo projeto, se comparado com o de Saturnino, é bom para o automóvel e ruim para as águas urbanas. As avenidas carcomeram o espaço (e a importância) dos rios.
Com o Plano de Avenidas, Ulhôa Cintra e Prestes Maia estabelecem o grande paradigma de ocupação de São Paulo: valorização do transporte rodoviário individual, valorização imobiliária de várzeas, estreitamento dos rios por grandes avenidas, negligência de sistemas urbanísticos hídricos. Se queremos recuperar os rios de São Paulo precisamos entender a intrínseca relação criada entre avenidas e rios por aqui, em que o primeiro prospera em detrimento ao segundo.
Não é possível realmente começar a resolver a crise hídrica sem redesenhar os rios e as margens, e para isso temos que livrar os espaços hoje tomados pelos carros. No lugar entram parques, pequenas estações de tratamento, canais laterais coletores de esgoto e um leito maior para os próprios rios. Em outras palavras, existe uma relação indissociável entre a crise no transporte e nas águas urbanas. Em outras palavras ainda, não devolveremos a dignidade aos rios se não construirmos transporte público e desativarmos as grandes avenidas. Olhemos para os anos 20.
Gabriel Kogan, 11/02/2015
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Os perigos do rodízio de água
A solução do rodízio de água em SP é péssima; trata-se simplesmente da medida mais barata para quem só sabe agir emergencialmente para tampar problemas:
1- Os canos vazios se tornam focos muito sérios de contaminação com a entrada de poluentes do lençol freático pelas fissuras.
2- Não é possível pressurizar um sistema todo em dois dias; parece que algumas pessoas nunca terão água (como já está acontecendo) nesse sistema. Já ficaria surpreso se conseguissem pressurizar a rede do centro de SP nesse tempo.
3- As perdas aumentarão, porque, ao repressurizar o sistema, rompem-se canos antigos. Calcula-se que as perdas aumentarão de 20 a 30% com isso.
4- Sem água os sistemas de esgotos não funcionam bem e há um aumento na concentração de poluentes, piorando ainda mais o problema de saúde publica já agravado pelo colapso.
5- Serviços públicos – caso não contratem caminhões pipa (que tem origem da água muitas vezes duvidosa, diga-se) – terão de fechar as portas. Isso inclui escolas e postos de saúde.
Outras medidas, muito mais eficientes e seguras, nunca entraram em pauta. Seria o caso, por exemplo, da instalação de medidores eletrônicos individuais que regulariam cotas fixas mensais para cada usuário. As principais cidades do mundo têm feito a substituição dos relógios antigos por novos há pelo menos uma década. É óbvio que não se faz isso do dia para a noite: “Estou aqui no meu Estado e fiquei pensando… será que vocês têm 5 milhões de medidores eletrônicos para pronta entrega amanhã?”. Todas essas ações pressupõe um mínimo de planejamento, bem… Isso parece faltar por aqui também.
Gabriel Kogan, 05/02/2015
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A crise prevista
O colapso no abastecimento foi anunciado por todos os relatórios públicos desde 2004. E querem saber? Isso nem dependia de chuvas abaixo da média, bastava índices pluviométricos normais para que o sistema entrasse em colapso. A crise hídrica já estava desenhada.
Segundo informações de 2009 divulgadas pela Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos do Governo do Estado no relatório de Situação dos Recursos Hídricos no Estado de São Paulo – Ano Base 2009 (http://goo.gl/TcaaMZ, 2011, p. 65), a demanda total na Bacia do Alto Tietê (que equivale a Região Metropolitana de São Paulo) era de 64,02m3/seg. Já a disponibilidade era de 31m3/seg (*). Havia, portanto, em 2009 um déficit de 33,02m3/seg. De onde poderia vir essa água? Do tal Sistema Cantareira, abastecido por outra bacia hidrográfica, a Bacia Piracicaba-Capivari-Judiaí (PCJ). Adicionados os 33m3/seg outorgados para o Sistema Cantareira (**), chegamos em 64m3/seg. O Plano Estadual de Recursos Hídricos (http://goo.gl/OUfNvw, p. 94, 2007), aponta outras transposições vindas de rios com vertentes oceânicas, somando mais 1,3m3/seg. (***)
Em 2009, tínhamos um cenário limite do sistema: demanda de 64,02m3/seg e disponibilidade em 65,3m3/seg. A conclusão do relatório da Secretaria (2011, 68) é, então, assustadora: “O balanço entre demanda e disponibilidade indica que a situação permanece crítica”. Mas, a partir daí, a condição do abastecimento da Metrópole de SP piora e começa a entrar em total colapso. O Relatório de Situação dos Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (http://goo.gl/j0HuA9, 2013, p. 44) mostra um crescimento linear da demanda por causa do crescimento econômico e populacional. De 2009 a 2011 a demanda passa dos nossos 64m3/seg para 66,1m3/seg, chegando, em Janeiro de 2014, segundo informações da própria Sabesp (http://goo.gl/cgKvfV), a 71m3/seg.
Porém, a disponibilidade hídrica não conseguia aumentar na mesma proporção. O último plano elaborado para a Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (http://goo.gl/I4tmOR, 2009) reavalia a disponibilidade hídrica, através de modelos computacionais, para 68,1 m3/seg e não mais 65,3 m3/seg. Reparem que os relatórios posteriores (2011, 2013) são reticentes em adotar esse novo número e preferem informações mais conservadoras para os cálculos.
Sem muito alarde, o Relatório de Situação dos Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (http://goo.gl/j0HuA9, 2013, p. 73) nota a discrepância de disponibilidade entre os relatórios públicos e, pior, mostra valores inflados pela Sabesp em seus documentos. A disponibilidade hídrica trabalhada pela Sabesp (73,7 m3/seg) não encontra respaldo nos outros relatórios públicos. Com os dados de disponibilidade mais altos, a Sabesp justificaria sua produção e a ausência de investimentos – que se converteriam em lucros maiores.
Mas, e agora? De onde veio essa água desde 2010 ou 2011, quando a vazão disponível é ultrapassada pela demanda? Dos reservatórios que agora chegam em 2015 praticamente secos. Em Janeiro de 2014, havia um déficit (em cenário normal de chuva) de pelo menos 2,9m3/seg, o que dá mais de 250 milhões de litros por dia. Esse déficit consumiu as reservas.
Já estava tudo nos relatórios… A gente que não viu (e quem viu preferiu fechar os olhos): o desabastecimento estava mais que anunciado.
(*) Utiliza-se aqui o índice chamado Q95% que aponta o comportamentos a longo prazo do sistema: “Representa a vazão disponível em 95% do tempo na bacia” e em “5% do ano (…) vazão inferior a este valor”. Este é um dado de cada bacia, baseado na disponibilidade hídrica em relação a bases estatísticas locais. Ele pode ser modificado tanto a partir de reavaliações mais precisas, como por meio da ação humana, sobretudo com novas transposições ou, por exemplo, com o aumento da eficiência no transporte de água. Outro índice, Qmédio, incorpora os reservatórios de água (represas) constituídos ao longo do tempo e passa a ser pouco significativo se a demanda de água ultrapassar a vazão disponível em Q95% (incluindo transposições existentes).
(**) Já como o valor estabelecido pelas resoluções não é fixo, por vezes esse valor de doação do Sistema Cantareira aparece em documentos oficiais como 31m3/seg e por vezes como 33m3/seg. Já o Plano da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê (2009) fixa esse valor em 29,9 m3/seg, como sendo um patamar seguro. O uso excessivo do Cantareira já é alvo de um processo do MP.
(***) Reparem também que a demanda global apontada nesse mesmo Plano Estadual de Recursos Hídricos (2007) é de 90,23m3/seg que não bate com o valor estipulado pelo relatório da Secretaria depois no relatório (2011). Em 2004, os documentos oficiais (http://goo.gl/3boMWB, 2004, p.17) apontavam um déficit ainda maior: de 400%.
Gabriel Kogan, 04/02/2015
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Boataria
Êxodo urbano por causa da crise hídrica? Tanto o custo de deslocamento das pessoas, quanto o valor necessário para arrumar o problema emergencialmente parecem que não justificariam um êxodo urbano. É mais provável que as pessoas consigam viver com muito pouca água e em meio a uma séria crise econômica por causa disso por mais 1 ou 2 anos.
Os reservatórios estão cheios? Os vídeos que mostram represas cheias são bastante sensacionalistas e leigos. Certos reservatórios precisam ser mantidos cheios para operação do sistema, sendo os 5% atuais uma média do todo. Eu já publiquei sobre isso (http://goo.gl/W2mZUT) e a Sabesp esclareceu também esse assunto (http://goo.gl/aVpSup).
O consumo doméstico é de apenas 5%? Considero que esse gráfico não foi bem elaborado (http://goo.gl/G3DS6l). A princípio, foi usada aqui uma média internacional e aplicada as perdas da Sabesp. Isso não faz sentido porque a empresa não fornece água em escala para agricultura urbana por aqui. Nesse gráfico faltam os dados também sobre o consumo de grandes consumidores não-industriais (muito significativos). De qualquer forma, dados confiáveis não estão disponíveis por causa da baixa transparência da Sabesp. É de se esperar que o consumo doméstico seja relativamente baixo frente ao todo, mas provavelmente não apenas 5%.
A água vai acabar? A água não acaba, o que acaba é a reserva de água nas represas, trazendo assim desabastecimento para os consumidores. No entanto, é preciso destacar que, mesmo em período de estiagem, existe captação de água; as fontes que abastecem as represas são perenes. Portanto, há sempre um fluxo mínimo.
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Enquanto nos aproximamos do colapso total no abastecimento em São Paulo, políticos tentam desesperadamente culpar a natureza: “é por causa da falta de chuva”. Nada disso. O problema é político mesmo.
Secas são periódicas e perfeitamente previsíveis a partir de estatísticas das bases de dados históricas. Um sistema robusto (e decente) de abastecimento deve ser concebido para aguentar anos seguidos de chuvas abaixo da média. Pesquisadores sobre clima como o professor Antonio Carlos Zuffo, da Unicamp, apresentam dados convincentes da sazonalidade de secas como essa a cada 35 a 50 anos – e isso não tem nada a ver com aquecimento global. Planejar sistemas para eventos que aconteçam nesses intervalos é mais do que plausível, é obrigatório em uma metrópole como a nossa.
A Sabesp foi parcialmente privatizada nas últimas décadas. Hoje, mais de 49% do capital está nas mãos de poucos, inclusive na Bolsa de Nova York. O governo do Estado tem feito políticas que atendem aos interesses desses acionistas e não da população. Assim, os lucros sugaram a capacidade de novos investimentos. Só em 2013 foram R$ 1,6 bilhão que saíram dos consumidores para remunerar os donos da água da cidade.
Mesmo nos países mais capitalistas do mundo, como a Holanda, as empresas de abastecimento são públicas. Por quê? A água é estratégica demais para ser objeto de especulação financeira. A incompetência e ganância na gestão hídrica nos últimos 20 anos no Estado de São Paulo tem agora dramáticas consequências para a economia da metrópole. Sem água, a economia capenga.
São Paulo negligencia sistematicamente o gerenciamento hídrico. Já estava instalada, muito antes e sem alardes, por exemplo, a crise do saneamento. Os rios são poluídos por uma razão simples: o esgoto não é recolhido e tratado, como inclusive exigiria a legislação. O Estado ignorou a lei e não classificou o rio Tietê. Supérfluo ou caro demais?
Lugares como Singapura fecharam o sistema de esgoto e abastecimento. Assim, toda a água consumida é recolhida pela rede pública, tratada com alta tecnologia e devolvida para a torneira. Saneamento e abastecimento são, portanto, dois lados da mesma moeda.
Já o governo federal fingiu que o colapso da maior cidade do país não era um problema relevante. A ANA (Agência Nacional de Águas), fazendo vistas grossas, se uniu a incompetência e descaso do governador. Nada foi feito, nem mesmo mudanças institucionais para pressionar outras instâncias.
Há exatamente um ano, eu publicava na seção Tendências e Debates, da Folha, um texto chamando a atenção para a seriedade da crise. Um ano! Eu fico imaginando quanto tempo o governador e os diretores da Sabesp tiveram para saber da possibilidade concreta do desastre. Muito mais do que eu, com certeza.
Em um ano, seriam possíveis investimentos que, se não revertessem, amenizassem muito o desabastecimento: cavar poços públicos e até construir (em regime de urgência) estações de tratamento para usar a água dos braços poluídos das represas. Em um ano, as gigantescas perdas do sistema podiam ter sido reduzidas com investimentos massivos.
Nada foi feito. As eleições estavam aí. O mais conveniente era não chamar a atenção para o problema. A mídia colaborou, se calando convenientemente até o dia seguinte do primeiro turno. Todos foram reeleitos; isso que importava.
O impacto econômico da crise hídrica para a cidade provavelmente superará o capital que teria sido necessário para fazer sistemas de abastecimento e saneamento de alta tecnologia e robustos, para despoluir e reurbanizar todos os rios, para devolver às águas à cidade – não mais como problemas urbanos, mas como virtudes, organizando lugares de encontros, espaços públicos.
Agora, as convulsões sociais, talvez tardias, são inevitáveis. E nelas não faltarão policiais armados, balas de borracha, spray de pimenta e, certamente, os novíssimos canhões d”água para combater esses “vândalos” – desta vez, também sedentos. Afinal, a ordem precisa imperar frente ao caos, não é mesmo?
Gabriel Kogan, publicado originalmente em http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2015/02/01/colapso-do-abastecimento-de-agua-nao-e-culpa-da-natureza.htm
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A crise como oportunidade
Precisamos ver as crises como oportunidades: a crise hídrica é uma chance para transformamos a essência dos nossos rios urbanos e dos padrões dos serviços públicos relacionados; para projetarmos rios como espaços públicos banhados por águas limpas.
Estou falando da oportunidade de criarmos políticas públicas sérias para águas urbanas; para colocarmos o planejamento a longo prazo das cidades na frente dos lucros imediatos de meia dúzia de empresa; de redesenharmos todos os córregos e rios com novos parques lineares; de construirmos canais laterais para drenar separadamente águas de esgoto e de chuva; de coletarmos todo o esgoto e tratarmos com estações nas fozes de cada rio e córrego; de criarmos patamares tão elevados de tratamento de esgoto que possamos reutilizar na rede de abastecimento; de desativarmos as avenidas marginais de todos os rios e córregos para alargamos os leitos e criarmos projetos paisagísticos para os terreno adjacentes; de termos portanto um transporte público descente; de desapropriarmos área de planícies aluviais.
Tudo isso é muito caro? Sim, mas caro será o prejuízo causado pela crise econômica na cidade em função do desabastecimento. Se começarmos no Brasil a internalizar todos os custos nas análises de políticas públicas, veremos que é muito mais barato fazer de outra forma. Caro é ter pessoas com os pés em córregos poluídos todos os dias; é caro para a vida delas, mas é caro também – para aqueles que só veem números – para os investimentos necessários depois em saúde pública. Caro é não fazer: o prejuízo econômico da crise hídrica, nada mais é que o capital que não foi investido no passado em um sistema fluvial, agora elevado a enésima potência.
Precisamos, antes de tudo, desconstruir a ideia de que não há projetos e que tudo isso é utópico. Para ficar em um mesmo exemplo, vejam os projetos orientados por Alexandre Delijaicov na FAUUSP (http://lattes.cnpq.br/6680777049179678); quase todos feitos em São Paulo e perfeitamente exequíveis para os rios da cidade. Ou mesmo o projeto do Hidroanel Metropolitano, coordenado pelo mesmo professor (http://www.metropolefluvial.fau.usp.br/).
Parafraseando Slavoj Zizek: para os políticos no poder, agora desesperados, a situação “é catastrófica, mas não grave”, porque poderá ser empurrada com a barriga com ações emergenciais e ao custo de fortes restrições à população; para aqueles que pensam que existe algo além a ser feito, a situação “é grave, mas não catastrófica” porque, com a coragem de enfrentarmos o problema, a possibilidade de fazermos diferente se anuncia mais do que necessária, se anuncia inevitável.
Gabriel Kogan, 31/01/2015
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Carta Aberta a Jerson Kelman
Segue minha carta aberta a Jerson Kelman, diretor da SABESP, pedindo esclarecimentos sobre questões de saúde pública relacionadas ao abastecimento em São Paulo em tempos de crise:
“Prezado Jerson Kelman,
Não nos conhecemos pessoalmente, mas estamos em lados opostos: você como diretor da SABESP e eu como crítico da empresa.
Assim como imagino que você concorde com a maioria os meus comentários, especialmente meu inconformismo em sua empresa ter 49,7% de capital privado sugando lucros e interferindo na gestão hídrica de toda uma metrópole; eu admito considerar você o melhor profissional para ocupar o cargo de direção da empresa, pelo seu grande conhecimento técnico e institucional do setor. Seu profissionalismo deve envergonhar seus trágicos antecessores que criaram uma situação dramática a levar a cidade inteira para o bueiro. O problema em suas mãos é incomensurável e eu não gostaria de estar na sua posição.
No entanto, gostaria de pedir aqui esclarecimentos sobre questões de saúde pública para a população. Peço-te que deixe de lado a demagogia que caracterizaram as gestões anteriores e tão bem define também nosso atual governador e as demais instâncias governamentais. A pergunta é, basicamente, uma só e espero dados científicos, comprovações irrefutáveis, sem bravatas políticas: a água abastecida pela Sabesp ainda pode ser considerada potável?
1- A qualidade dos “volumes mortos” tem sido sistematicamente testada, incluindo poluentes quase invisíveis como os materiais inorgânicos solúveis, como hormônios e medicamentos? Estamos diante de águas mais suscetíveis a essas interferências, correto?
2- A qualidade da água no destino final (consumidor) está garantida mesmo com as perigosas reduções de pressão da rede que permitem entrada de poluentes do lençol freático no sistema? Esses testes são feitos em vários pontos por quarteirão, em todos os quarteirões da cidade? Você sabe que a pressão da água no lençol freático, assim como a condição da rede e a qualidade da água subterrânea podem variar muito. A qualidade da água é igual em toda a cidade?
3- Estão ocorrendo cortes totais. Como a qualidade da água está sendo mantida sem infiltração do lençol freático nesse caso? Se a pressurização está sendo feita com ar, como garantir que isso não gire medidores de consumo, mesmo sem água?
4- A Sabesp considera a oscilação nas caixas d’água por causa dos frequentes desabastecimentos um fator relevante para aumento de contaminação?
5- Os braços poluídos da represa Billings estão sendo usados para abastecimento? Como a qualidade de água pode ser garantida nesses casos, já que a extração nessas áreas sempre foi, historicamente, considerada perigosa? Houve melhorias nas estações de tratamento para isso?
6- Por que a Sabesp continua baseando seu tratamento em cloro, já que essa técnica já foi proibida na maioria dos países desenvolvidos, inclusive União Europeia? Existe a possibilidade no aumento da incidência de câncer na população por causa de uso massivo de cloro?
Por fim, gostaria de saber se, frente a esses riscos (ou a confluência deles), não seria prudente e responsável recomendar à população que não beba a água da torneira, mesmo com o uso de filtros domésticos. É uma questão de saúde pública, não é possível se privar da responsabilidade em responder essas questões de forma precisa.
Atenciosamente,
Gabriel Kogan”
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Crise hídrica: O que fazer?
A água vai acabar? O que fazer? Os planos apresentados pelo Governo do Estado parecem insuficientes para conter a crise e garantir que a cidade não sofra um dos maiores desastres sociais, econômicos e ambientais da história humana. Os níveis dos reservatórios não param de cair. A péssima gestão de recursos levou a um estado de colapso no sistema e reverter isso custará muito caro.
Desde o começo da crise tenho me esquivado de apresentar soluções. Primeiro porque qualquer discussão sobre o assunto deve ser pública; segundo porque eu não disponho de dados claros os suficientes para respostas científicas. Arrisco um esboço de medidas que me parecem necessárias, eficientes e plausíveis. Mas entendo que elas precisariam ser tomadas em bloco, uma sem a outra não funciona, e muito estudadas. O custo disso? Bilhões e bilhões (possivelmente mais que o montante investido na Copa e Olimpíadas). Algo será necessário a ser feito algo além das lentas transposições já prometidas e interligações de sistemas. Coloco essas sugestões, sobretudo, como discussão de pautas para reinvindicações populares. Nada será feito sem lutas.
-Estatização da Sabesp e adequação da tarifa (1)
-Exploração de água subterrânea em poços públicos de baixo desempenho (2)
-Exploração de água subterrânea em poços públicos de alto desempenho (3)
-Investimento em detecção de perdas (4)
-Criação de um órgão público municipal (5)
-Criação de uma agência federal para áreas metropolitanas (6)
-Projeto de reflorestamento de mananciais (7)
-Investimentos em saneamento, reurbanização e despoluição de rios (8)
-Projetos pilotos de fechamento do ciclo de abastecimento-esgoto (9)
-Instalação de relógios eletrônicos individuais e restrição de cota per capita (10)
-Construção de uma estação de tratamento para a Represa Billings (11)
(1) Estatização da Sabesp. Isso é o mais fundamental para que o problema possa ser corrigido sem interesses particulares em jogo e para que a crise não volte a ocorrer no futuro. Por que os lugares mais capitalistas do mundo como a Holanda têm seus serviços gerenciados por empresas públicas? Simplesmente porque o setor de água é estratégico demais para ser tratado como mercadoria ou como jogo de ações. A maior parte do capital privado da Sabesp deve ser transferida para os municípios servidos ou Estado. Uma porcentagem pequena pode permanecer negociada em mercados, algo que não passe, por exemplo, de 10%. Com a Sabesp estatizada, eu recomendo que a tarifa da água atinja patamares sustentáveis. Água é bastante barata em meio urbano para gerar inflação geral. A água mais cara é aquela que não temos. Portanto, a arrecadação do Estado com água deve cobrir as despesas de operação e investimentos, com exceção desse período inicial de readequação que demandará capitais gigantescos de várias fontes.
(2) Exploração de água subterrânea em poços públicos de baixo desempenho próximos da metrópole. Em regime de urgência, para que o sistema consiga esboçar recuperação, a Sabesp deve perfurar poços de exploração de água subterrânea em fazendas específicas, a serem desapropriadas segundo mapa de recursos hídricos e alocação de água. É sabido que a eficiência de eventuais poços próximos da cidade não será alta, mas essa água pode contribuir significativamente para o abastecimento, sobretudo se o número de poços for grande. As águas desses poços precisam receber tratamento similar a as provenientes de reservas superficiais (represas). A exploração deve também ser sustentável, sem que seja abstraída mais água que a capacidade de recuperação do lençol.
(3) Exploração de água subterrânea em poços públicos de alto desempenho. Parece adequado trazer água do centro do Estado de São Paulo, dos lençóis aflorados do chamado aquífero Guaraní. Para isso será necessário investimento em grandes aquedutos e subestações de energia elétrica para bombeamento do líquido. Será uma água cara, mas que pode vir em grande quantidade e, se for feito estudo adequado, de forma ambientalmente correta.
(4) Contratação de milhares de equipes treinadas para detecção de perdas. Técnicos munidos de equipamentos ultrassônicos de detecção de vazamento devem percorrer 24hs todas as ruas da capital. Vazamentos devem ser arrumados em poucas horas. Além disso, desvios ilegais precisam ser cortados; quem não paga, não usa racionalmente. Para compensar, tarifas sociais são indicadas. É necessário um investimento massivo nas detecção de perdas, não são meia dúzia de equipes que resolverão o problema na escala de SP.
(5) Criação de um órgão público municipal. A prefeitura precisa ser reinserida no debate a partir de um escritório público de assuntos hídricos, que inexiste até hoje. A função dessa instituição será fiscalização dos órgãos estaduais e projeto para novos empreendimentos públicos urbanísticos no setor das águas, como a perspectiva de uma transição do atual sistema para um gerenciamento sustentável de recursos.
(6) Criação de uma agência federal para áreas metropolitanas. Há uma ambiguidade na legislação se é a responsabilidade de abastecimentos em áreas metropolitanas é do município ou do Estado. Jurisprudência no STF indicou que é do Estado, ao contrário de áreas não-metropolitanas. Nesse caso, a instância federal precisa ter um órgão específico de fiscalização e, até, de investimentos complementares nessas regiões. A instância Estadual não pode simplesmente fiscalizar ela mesma; nem nós podemos fechar os olhos para o problema institucional no setor, com leis demasiadamente complexas.
(7) Programa de reflorestamento de mananciais. As áreas de cabeceiras precisam ser urgentemente recuperadas ambientalmente. Por incrível que pareça, situações análogas mostram que a recuperação hídrica em áreas reflorestadas pode ser surpreendentemente rápida. Não estamos falando, de qualquer forma, de meia dúzia de árvores, mas centenas de milhares de hectares, um projeto massivo.
(8) Investimentos em saneamento, reurbanização e despoluição de rios. Essa é a medida mais importante a ser adotada. A crise de abastecimento já é, na verdade, uma crise antiga e invisível: a de saneamento. O problema em São Paulo não é a falta de água, mas falta de água limpa. Nas últimas décadas, o poder público negligenciou totalmente esses investimentos, porque “saneamento só dá prejuízo” e não traz votos. A última estação de tratamento de esgoto concluída em São Paulo foi em 1998! 1998! Os córregos precisam ser todos redesenhados, se possíveis destamponados e acompanhados de novos parques lineares adjacentes, para reinserir as águas na vida urbana. Cada rio precisa ter um feixe de pelo menos 5 canais paralelos (quatro subterrâneos: um de águas pluviais e outro de esgoto, de cada lado; e um superficial: o canal central). Cada um desses tipos de canais tem suas águas encaminhadas para estações de tratamento específicas. O ideal é que essas estações fiquem nas fozes dos córregos/rios. Estamos falando de um investimento estratosférico, para corrigir erros históricos e tentar salvar o sistema hídrico de SP. Aliás, a lei brasileira já exige que as águas urbanas sejam totalmente tratadas, fato ignorado pelo Governo do Estado por meio da Sabesp. O município também é corresponsável por isso. Pode parecer inacreditável, mas a atual gestão suspendeu um projeto modelo: o Renova São Paulo, que propunha a reurbanização de córregos na cidade, acompanhado de investimentos em habitação.
(9) Projetos pilotos de fechamento do ciclo de abastecimento-esgoto. Cidades como Singapura (com seus 5 milhões de pessoas) conseguiram fechar o ciclo de água. Ou seja, tudo que é consumido, vira esgoto e depois é tratado com padrões tão sofisticados que podem ser reinseridos no sistema como água potável novamente. Assim, praticamente não é necessário fazer captação de novos recursos; tudo é reutilizado. Acredito que esse é o futuro para qualquer cidade. Para isso é necessário uma rede nova de esgotamento e abastecimento, totalmente lacrada e de alta tecnologia. Em São Paulo isso pode começar a ser feito em certos bairro, como projetos pilotos para que no futuro atingir toda a cidade.
(10) Instalação de relógios eletrônicos individuais e restrição de quantidades per capita por mês. A economia de água que isso propicia pode ser gigantesca: o consumidor paga pelo que consome, mesmo em um prédio com a caixa d’água coletiva. Além disso, a concessionária pode programar o medidor para liberar apenas certa quantia por mês para cada usuário. No caso de torres, é necessário uma instalação mais complexa, com sensores nos barriletes. Essa medida é de alta eficiência e considerada extremamente cara.
(11) Construção de uma estação de tratamento de água para a Represa Billings. Parte da maior reserva de águas de São Paulo não pode ser usada por causa dos índices de poluição. Existem hoje usinas de tratamento de altíssimo desempenho, capazes de remover quase qualquer poluente. A construção de uma dessas plantas industriais de alta tecnologia viabilizaria o uso da Represa Billings. Aliás, não consigo entender, a não ser por questões eleitorais, porque isso não começou a ser feito.
Por fim, sou totalmente contrário a qualquer projeto de descentralização de redes de abastecimento, sejam cisternas ou poços artesianos, como política pública. Primeiro, porque já existe um sistema público instalado – e pagamos bem caro por isso no passado; segundo, porque não há como garantir a qualidade dessa água vinda de milhares de fontes diferentes e testar em laboratórios isso rotineiramente é algo incabível em termos de custo-benefício. Terceiro, porque, especialmente no caso dos poços, a exploração pode parecer uma solução mágica no presente, mas é desastrosa no futuro, gerando um desequilíbrio de todo o sistema hídrico com cada um tirando a água da forma que lhe parecer melhor. A única exceção que penso ser desejável a esse respeito é a instalação de sistemas de reaproveitamento de água pluvial em vasos sanitários (apenas para vasos) para novas construções (a adequação em antigas é extremamente custosa e difícil). Torneiras de jardim são perigosas porque podem ser manipuladas de forma inadequada por alguns usuários desavisados, como crianças.
Além disso, sou também contrário à redução de pressão da rede ou rodízio de regiões. Isso pode criar uma solução muito problemática para a saúde pública porque aumentam as chances de contaminação na rede vinda do lençol freático, dada os altos níveis de vazamentos: o mesmo buraco por onde a água vaza, torna-se porta de entrada de agentes nocivos se a pressão é baixa. A ideia de construção de uma usina dessalinizadora em Santos é tão absurda que não merece nem ser comentada.
Essas são medidas de curto, médio e longo prazo; mas todas, caso sejam feitos investimentos brutais, podem dar resultado em pouco tempo (talvez meses). Mas algo precisa ser feito e com o atual Governo do Estado nenhuma mudança sairá sem muita luta popular.
Gabriel Kogan é arquiteto e jornalista, formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP; seu mestrado, em Gerenciamento Hídrico no UNESCO-IHE (Holanda), focou as origens históricas das enchentes em São Paulo.
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1- LUCROS DESPROPORCIONAIS: A capacidade de investimento da SABESP foi corroída por lucros estratosféricos e uma gestão voltada para satisfazer acionistas, que capitalizaram a concessionária no passado em ofertas públicas de ações. A empresa é parcialmente pública, porém regida por interesses privados.
2- GESTÃO SEM FISCALIZAÇÃO: Os órgãos responsáveis, tanto pelo serviço quanto pela fiscalização, estão todos nas mãos da instância estadual. Ninguém, portanto, multa ninguém ou obriga mudanças radicais de gestão. A ausência de alternância de poder estadual agravou o problema.
3- ESGOTO SEM TRATAMENTO: O saneamento foi negligenciado pelo Estado e o judiciário fez vistas grossas disso. O problema então não é simplesmente de falta d’água, mas falta d’água limpa. Os rios, lençóis freáticos e represas estão poluídos, e a coleta de esgoto é precária, o que dificulta o reaproveitamento do recurso após eventual tratamento.
4- INTERESSES ELEITOREIROS: Interesses políticos-eleitorais se sobrepuseram a campanhas de esclarecimento ou a possibilidade de novos investimentos para contornar, em regime de urgência, uma situação anunciada como dramática há, pelo menos, dois anos.
5- DESTRUIÇÃO AMBIENTAL: O desflorestamento nas regiões de cabeceira sem nenhum controle público afeta o regime hídrico e reduz a capacidade de recuperação cíclica de nascentes.
6- PRODUÇÃO ESTAGNADA DE ÁGUA . A falta de investimentos sistemáticos ou emergenciais permitiu que o consumo superasse a oferta sem que nada fosse feito. Os reservatórios existentes entrarem em estado de estresse. Novas fontes de água, como a subterrânea, não foram exploradas.
7- TECNOLOGIA ULTRAPASSADA. O descaso de investimentos acarretou em péssima manutenção de rede (hoje com grandes perdas) e no uso de uma tecnologia obsoleta para abastecimento e saneamento. O tratamento a base de cloro, por exemplo, está proibido na Europa e Singapura trata todo o esgoto e reinsere na tubulação de água potável para fechar o sistema, sem desperdiçar uma gota sequer.
Gabriel Kogan, 12/01/2015
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A gestão de águas em SP é um grande acordo de cavalheiros, em que quem sai perdendo é a população mais pobre, agora sofrendo as consequências da péssima administração no setor.
Há uma ambiguidade na legislação brasileira se a responsabilidade sobre o abastecimento e esgotamento deve ser do estado ou do município no caso de regiões metropolitanas. O STF, em 2013, abriu jurisprudência – a valer nacionalmente – em favor do Estado do Rio de Janeiro. Seguindo o ideal do pacto federativo, porém, devemos considerar que a responsabilidade direta é do Estado, mas o município deve agir como fiscalizador das atividades.
Bom… O que se passa no mundo encantado de São Paulo? A prefeitura conseguiu fazer um acordo com o Estado em 2010 (ver aqui: goo.gl/5gTJWd), formalizando a responsabilidade da SABESP – uma empresa parcialmente estadual, porém jogada aos interesses dos acionistas. O único órgão da região já estabelecido para fiscalizar e regular esse acordo era então a estadual ARSESP (nunca ouviu falar? nem eu tinha). O que a prefeitura fez em 2010? Transferiu também a responsabilidade da fiscalização do contrato que tinha firmado com o Estado e Sabesp para a ARSESP. Vejamos. SABESP: Estadual, respondendo a interesses privados. ARSESP: Estadual. Responsabilidade pelas águas: Estadual. Fiscalização e regulação: Estadual.
Portanto, respondendo a pergunta: Por que multar os consumidores de água e não a Sabesp pela crise? Porque todas as instituições de serviço e regulação estão na instância estadual, e o Estado multar a Sabesp seria como o ele multar a si mesmo ou, pior, prejudicar os acionistas que emprestaram dinheiro para a Sabesp, algo que o Governo Alckmin já mostrou que não irá fazer até o fim, custe o que custar. Por fim, parece mais que óbvio dizer que o serviço/gestão/fiscalização de águas não pode funcionar adequadamente nesse modelo, montado para satisfazer poucos interesses, distantes de ideias republicanos. Foi o que já escrevi antes: a crise das águas em SP mostra a falência do pacto federativo no Brasil.
Gabriel Kogan, 11/01/2015
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