Os Sertões (I)
“Os Sertões” de Euclides da Cunha foi publicado em 1902. O livro é um conjunto de textos escritos para o jornal O Estado de S. Paulo sobre a campanha de destruição do arraial de Canudos, na Bahia. Trata-se de um relato de um jornal republicano sobre uma afronta ao poder estatal brasileiro: depois de vagar durante anos pelo sertão nordestino e adquirir fama de ‘homem santo’, Antônio Conselheiro e seus seguidores, se estabeleceram numa fazenda abandona em Belo Monte. A comunidade fundada por esses Homens sertanejos recebia todos as pessoas que, naquele território, encontravam difíceis condições de trabalho e sobrevivência. O poder vigente, sobretudo a imprensa, os fazendeiros e o Estado, não demoraram para enxergar em Conselheiro e seus Homens, em sua nova “terra santa”, uma ameaça, sobretudo simbólica. Foram organizadas 3 ofensivas pelo exército brasileiros e em todas elas a nação de Canudos impôs derrotas contra o Estado. Na quarta campanha, em 1897, Canudos é destruída e Antônio Conselheiro é morto.
O livro de Euclides da Cunha, escrito a partir de uma ótica republicana, é também um importante relato sobre o território e, com uma linguagem poética e ao mesmo tempo científica, uma referência fundamental sobre a Terra, o Homens e a Luta no Sertão. No trecho a seguir Euclides da Cunha descreve “A Entrada do Sertão” e seus caminhos:
“Os morros do Lopes e do Lajedo aprumam-se, à maneira de disformes pirâmides de blocos arredondados e lisos; e os que se sucedem, beirando de um e outro lado as abas das serras da Saúde e da Itiúba, até Vila Nova da Rainha e Juazeiro, copiam-lhes os mesmos contornos das encostas estaladas, exumando a ossatura partida das montanhas.
O observador tem a impressão de seguir torneando a truncadura malgradada da borda de um planalto.
Calca, de fato, estrada três vezes secular, histórica vereda por onde avançavam os rudes sertanistas nas suas excursões para o interior.
Não a alteraram nunca.
Não a variou, mais tarde, a civilização, justapondo aos rastos do bandeirante os trilhos de uma via férrea.
Porque o caminho em cuja longura de cem léguas, da Bahia ao Juazeiro, se entroncam numerosíssimos desvios para o poente e para o sul, jamais comportou, a partir de seu trecho médio, variante apreciável para leste e para o norte.
Calcando-o, em demanda do Piauí, Pernambuco, Maranhão e Pará, os povoadores, consoante vários destinos, dividiam-se em Serrinha. E progredindo para Juazeiro, ou volvendo à direita, pela estrada real do Bom Conselho que, desde o século 17, os levava a Santo Antônio da Glória e Pernambuco — uns e outros contorneavam sempre, evitando-a sempre, a paragem sinistra e desolada, subtraindo-se a uma travessia torturante.
De sorte que aquelas duas linhas de penetração, que vão interferir o S. Francisco em pontos afastados — Juazeiro e Santo Antônio da Glória —, formavam, desde aqueles tempos, as lindes de um deserto.”
(CUNHA, Euclides da in “Os Sertões”, Trecho de A Terra)
Post enviado por Gabriel Kogan
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Tags:Antonio Conselheiro, Euclides da Cunha, Os Sertões
acho tão interessante quanto, talvez menos bonito e historicamente relevante (e revelante) o relato do mesmo euclides da cunha sobre a Selva Amazônica, em expedição do comecinho do século xx. E tanto no sertão quanto nas regiões amazônicas ele se considera em meio a essas “terras-de-ninguém” que quase nem tangenciam as ciências, a história, a geografia, para não chama-las “aculturadas’…
mas essa expedição às regiões amazônicas de euclides fica mais instigante se aproximada da expedição russa langsdorff, ocorrida 60 anos antes também pelo interior do brasil e com intenções de certa forma similares às de euclides, de registro, inventário, relato do território e sociedade — passaram inclusive por semelhantes problemas de doenças tropicais, botes quebrados etc.
e a aproximação mais divertida que pode ser feita entre a exploração langsdorff e a de euclides da cunha é de grau familiar: da primeira, um integrante muito importante foi Hercule Florence, que se ocupou do registro em desenhos e mapas — e que depois tratou de singelamente inventar a fotografia em pleno interior paulista —; na exploração de euclides da cunha, Egas Florence, evidentemente descendente de Hercule, trabalhou no relato fotográfico (fazendo juz à invenção do avô) e cartográfico. Quem diria poder colocar euclides da cunha, rússia e fotografia na mesma panela.
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