… e o mar vai virar sertão
Segue uma tradução feita para esse blog de outro trecho do livro Aridscapes do arquiteto israelense Shlomo Aronson sobre o Mar de Aral. Mais do que uma história isolada de um distante e remoto Cazaquistão, a tragédia do Mar de Aral pode funcionar como uma analogia da transposição do Rio São Francisco, uma analogia do que pode vir a ser a transposição do Rio, uma analogia da fragilidade de todos os lugares e do leve equilíbrio em que vivemos. As semelhanças entre o projeto para o sertão nordestino e o projeto soviético não param no clima semi-árido das regiões: a salinização das terras cultiváveis em decorrência de uma má drenagem do solo e de um uso impróprio e massivo da água são pespectiva e fato, respectivamente. Tanto para o Mar de Aral quanto para o São Francisco, a fácil promessa de desenvolvimento econômica encobre uma situação mais complexa ecologicamente e politicamente. Eis o Mar de Aral.
“Do começo do século XX até o presente, muitas nações tentaram criar uma economia forte e um mercado auto-suficiente subordinando a natureza e a tecnologia a uma visão de desenvolvimento econômico. A maioria dos especialistas parecem estar de acordo de que se concentrar em novos objetivos de grande escala, como a administração regional da água ou a introdução de novos insumos cultivados, aliado a um certo sacrifício de parte da população, pode aumentar as riquezas e a segurança de toda uma nação. Nessa perspectiva, insumos como o algodão poderiam e deveriam ser cultivados em lugares em que ele nunca foi produzido caso houvesse um mercado e formas de levar isso adiante. O conhecimento científico e tecnológico era a base para essas intervenções radicais nos sistemas naturais.
Acreditava-se que essa tendência era benéfica para todos, do âmbito nacional a escala local. A base científica e tecnológica sobre a qual essas mudanças foram implementadas está começando a se mostrar insuficiente. A interdependência dos sistemas naturais é hoje conhecidamente muito mais complexa do que se pensou anteriormente e hoje apenas alguns especialistas poderiam presumir que nós entendemos completamente essa lógica.
Na década de 1960, quando muitas pessoas pareciam ter uma crença, ainda que desqualificada, na nossa habilidade de controlar a natureza, a União Soviética, instigou um projeto para plantio de algodão na Ásia Central. Significativos desvios dos rios Amu Daria e Sir Daria (os maiores afluentes do Mar de Aral) foram realizados. O abastecimento do mar, antes de 970 km3 por ano, passou a ser de 60 km3 e depois 5 a 10 km3 por causa do desvio das águas para irrigação. A produção do algodão se tornou uma gigantesca indústria, empregando a maior quantidade de pessoas na região. No entanto, o lento acúmulo de mudanças que resultaram numa drástica intervenção no sistema natural das águas configurou um desastre ecológico.
A salinização crescente das terras irrigadas é agora uma séria ameaça para a agricultura que é sustentada pelo projeto. Ainda mais desastroso é o fato de que desde 1960 a superfície do Mar de Aral foi reduzida em 50% e, seu volume, em 75%. Em alguns lugares a margem recuou quase 100 km em relação à linha anterior, deixando no meio do nada cidades e vilarejos que uma vez viveram da pesca. A indústria pesqueira colapsou completamente por causa da alta concentração de sal, minerais e da contaminação pelos pesticidas pesadamente empregados nos campos agricultáveis da região.
Somando-se a isso, os fortes ventos da região pegam a poeira salgada do lago seco e a deposita na terra arada, causando ainda doenças respiratórias para as pessoas que ali vivem. As taxas de câncer também aumentaram significativamente. Há também uma ameaça de que a população local seja exposta a Antraz (Anthrax) e outras doenças. Esses materiais eram usados em experiência em antigas instalações militares secretas numa ilha no meio do Mar de Aral, mas agora a base foi abandona, expondo os elementos. Por causa da construção deficiente dos canais de irrigação do sistema, uma grande parte da água disponível é perdida por infiltração e evaporação. O lençol freático regional está afundando e toda água potável disponível foi contaminada por sais e pesticidas.
Na verdade, o projeto acabou provocando resultados negativos muito maiores do que os benefícios que foram previstos para a maioria dos habitantes da região e dos países limítrofes. O Mar de Aral é um dois vinte lagos mais antigos do mundo e acredita-se que sua existência remonta a mais de cinco milhões de anos. Não se sabe se a catastrófica destruição de seu ecossistema endógeno, compreendido pelo Mar e pelas terras do entorno, pode ser completamente reparado. Em 2003 uma barragem foi construída pelo governo do Cazaquistão para separar a água de duas partes do mar. A proposta era dividir a contaminação na metade norte e, com a adição de água limpa nova, começar um processo de renovação.
Os resultados foram melhores do que o esperado. O nível do lago na parte norte subiu em torno de 30 a 38 metros, dos 42 metros que foi estimado para um patamar ótimo. Os estoques de peixe voltaram e a pesca começou a ressurgir. Até mesmo o clima, que foi drasticamente alterado pela desertificação da área, melhorou. Existe hoje uma preocupação generalizada sobre o bem-estar na região do Mar de Aral e muitas propostas para remediar a situação. Não está claro ainda como elas serão executadas. O que se tornou claro pelos desastrosos resultados dessa intervenção massiva foi a extrema fragilidade do bem-estar na maioria dos ecossistemas. Nosso entendimento da interdependência dentro de qualquer sistemaecológico precisa de muito mais refinamento para reduzir o risco de falhas catastróficas.”
In: Shlomo Aronson, “Aridscapes. Proyectar em tierras ásperas y frágiles (designing in harsh and fragile lands)”, Gustavo Gilli, GG. Barcelona, 2008.
Post enviado por Gabriel Kogan
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Tags:Mar de Aral, semi-árido, Transposição do Rio São Francisco
muito bom esse site