Sobre Brasília, seu arquiteto e seu obelisco
No começo do ano de 2009, Oscar Niemeyer propôs um importante projeto para Brasília: a Praça da Soberania. Além de um grande Obelisco com vista para a cidade, a praça resolveria crônico problema de estacionamento no eixo monumental. A proposta do centenário arquiteto e a discussão que se desenvolveu a partir dessa proposta suscita algumas importantes questões para a cidade moderna e o patrimônio urbano.
O obelisco de Niemeyer fere o tombamento de Brasília?
Não. Ou não deveria ferir. Niemeyer está certo em achar que é uma aberração o tombamento de uma cidade. A cidade deve, a cada momento, ser construída pelos seus próprios cidadãos e não ser um objeto estanque. São Paulo, inclusive, deveria discutir o destombamento de bairros como os Jardins e o Pacaembu, que provocam grandes desadensamentos e graves conseqüências urbanas para a cidade.
O obelisco fere a concepção original do Plano Piloto?
Também não. Brasília foi concebida como uma cidade barroca. É coerente a argumentação de Niemeyer, dentro da lógica do plano piloto, que a cidade deve a cada momento impressionar e impressionar. O plano piloto é uma diretriz de construção dessa cidade barroca. O obelisco indiscutivelmente seria uma forma monumental de modificação da cidade.
Então seria positiva a construção do projeto?
Ao meu ver, não. O modelo de cidade barroca parace despropositado para o Brasil e deve ser revisto. Trata-se de uma discussão política. As centenas de milhões de reais destinados à construção de um edifício sem qualquer função poderiam ser empregados em importantes melhorias urbanas nas cidades-acampamentos, satélites ao plano piloto.
O que existe ainda por trás da construção de um obelisco com estacionamento para 3000 carros?
Niemeyer sustenta uma idéia anacrônica de que o carro é sinal de desenvolvimento, e não grande vilão das cidades e dos homens que nelas habitam. Um caos de trânsito se anuncia nos últimos anos na capital, que continua a negar qualquer sistema minimamente eficiente de transporte público. Seria possível, na mesma linha de raciocínio, com o dinheiro do projeto, estruturar um sistema de ônibus que servisse a todos, e que possibilitasse que o carro não fosse estacionado nem no obelisco e nem em qualquer outro lugar. Políticos, por sinal, usando ônibus em determinados dias da semana é lei obrigatória em algumas cidades européias. A posição de Niemeyer e seu projeto coloca, também neste aspecto, uma questão ética imensamente questionável.
O projeto fere ou não a rodoviária da cidade?
Niemeyer se impõe sobre a obra de Lucio Costa. Existe uma licensa poética no fato de Brasília ter em seu centro um lugar de vida popular. Para Niemeyer, na cidade barroca, o povo deve se encantar. A vida popular, que tem na rodoviária sua maior expressão, não representaria para ele grande importância. Novamente isso parece coerente com a visão de cidade do arquiteto e o fortalecimento do Estado que deve ter seus palácios, e não seu povo, resplandecentes. O nome da praça proposta com o obelisco é sugestivo nesse sentido: Praça da Soberania. É a partir dos termos de Hobbes, com a superlativação do poder e assim do próprio controle, que a cidade imaginada por Niemeyer nos conduziria para a igualdade.
Os objetos arquitetônicos de Niemeyer devem ser acolhidos indiscriminadamente na cidade-monumento?
Não. O problemático projeto do novo museu no eixo monumental é prova que os projetos de Niemeyer devem ser vistos com olhos críticos sim. Apesar do programa oportuno de um museu público e de uma biblioteca pública, a construção é um dos maiores fracassos arquitetônicos do arquiteto. A implantação é mal-feita, sobre a catedral; a praça é um desastre de urbanidade, imprópria para o clima de Brasília e a forma é estruturalmente irracional, uma vez que foram colocados tirantes de forma assimétrica na cúpula, provocando uma deformação desigual que tem que ser vencida com um uso excessivo de concreto e ferro. A surreal execução e detalhamento do projeto também dispensam quaisquer comentários: dificilmente poderiam ser piores. Talvez só uma pequena caminhada de alguns metros até o belíssimo Itamaraty pode nos salvar de uma espécie de depressão arquitetônica e nos fazer entender a potência da cidade barroca de Niemeyer, que, sem notarmos, sem concordarmos, sim, ela insiste em nos seduzir.
Em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0202200913.htm há uma entrevista de um lúcido Niemeyer sobre o assunto. O acesso do link, porém, é restrito para assinantes do UOL e da Folha.
Post enviado por Gabriel Kogan
Filed under: arquitetura do território, imagem, infra-estrutura e metrópole | 2 Comments
Tags:Barroco, Brasília, Eixo Monumental, Niemeyer, Obelisco, Oscar Niemeyer, Praça da Soberania
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