‘Sapere Aude!’
“De fato, basta que a liberdade seja dada para que o esclarecimento torne-se praticamente inevitável. Sempre haverá pensadores independentes, mesmo entre os auto-intitulados guardiães da multidão. Uma vez que tais homens livrem-se do jugo da menoridade, derramarão sobre si o espírito de uma apreciação razoável do valor humano e de seu dever de pensar por conta própria.” Immanuel Kant (1)
No começo deste ano de 2009, a atual gestão de Gilberto Kassab do governo da prefeitura de São Paulo, deu um importante passo para concretizar a desarticulação do escritório público de arquitetura da própria prefeitura. Os cargos de Alexandre Delijaicov, André Takiya e Silvana Santopaolo, arquitetos concursados da EDIF, como é chamado o escritório público (Departamento de Edificações), foram “colocados a disposição”. Mais do que um banal rearranjo de cargos, a atitude do governo reflete uma política hegemônica de todos os principais partidos brasileiros e do qual o Democratas (do Prefeito Gilberto Kassab e do ex-senador Antonio Carlos Magalhães) sustenta, desenvolve e reproduz ideologicamente.
Esta visão política entende o Estado, por exemplo, como simples executor de ordens do governo. Em outras palavras, o corpo de servidores públicos deve ser composto por profissionais burocratizados que não devem pensar ou propor, inviabilizando qualquer proposta de longo prazo (que não paleativas) e que sejam concebidas de forma autônoma da política partidária-eleitoral. Nessa lógica, os departamentos públicos devem simplesmente obedecer mediocremente aquilo que os é solicitado, e qualquer cabeça pensante, que tenha opiniões políticas inclusive, devem ter seus cargos colocados a disposição de lugares onde possam fazer isso. ‘O lugar dessas pessoas não é no Estado’.
Profissionais de extrema competência, que nunca deixaram de exercer perfeitamente seu “uso privado da razão” (2), os arquitetos afastados não se satisfazem com a alienação imposta pelos trágicos governos que assolam a política brasileira recente e fazem o que Kant descreve (1) como “ter a coragem de usar o seu próprio entendimento” ou ‘sapere aude!’ (ousar saber!). Para o filósofo, o Homem poderia assim sair de sua situação de menoridade, exercitando seu “uso público da razão”, coisa que, diga-se, esses arquitetos felizmente também nunca deixaram de fazer.
Silvana desenvolvia atualmente importante projeto de restauro de teatros com trabalho preciso e meticuloso. Alexandre Delijaicov (professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e muitas vezes, apontado por um público especializado um dos principais arquitetos do país (3)) e André Takiya, ao lado de Wanderley Ariza (que permanece na EDIF), foram mais do que arquitetos dos CEUs (Centros Educacionais Unificados (4)), eles idealizaram, inclusive conceitualmente, o projeto dos centros desde o começo. A história quase secreta dos CEUs remete-se diretamente a algo mais antigo do que se possa imaginar inicialmente. Quinze anos antes de sua construção, a idéia foi concebida enquanto Paulo Freire ocupava o cargo de secretário de Educação, de forma integrada com várias secretarias. Durante todos esses anos o projeto foi desenvolvido nos escritórios da EDIF até ser construído em 2003, ainda que como um brinco de pérola eleitoral, e se transformar, em seu projeto original, em uma das mais importantes intervenções públicas urbanas em São Paulo e do Brasil, ao lado de projetos como o Aterro do Flamengo. Na verdade, a história dos CEUs é mais antiga do que os 15 anos que os arquitetos passaram desenvolvendo seu projeto e remete-se a própria origem da EDIF, 60 anos antes.
Criada inicialmente como Convênio Escolar (5) e vinculada diretamente ao Gabinete do Prefeito, o orgão tinha como principal objetivo a implementação de uma rede qualificada de equipamentos de educação na cidade. O projeto arquitetônico era, assim como nos CEUs, concebido de forma integrada com o projeto pedagógico. O arquiteto Hélio Duarte, importante professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi encarregado do Convênio Escolar desde seu princípio no final da década de 40 e começo da década 50, aliado as idéias do pedagogo Anísio Teixeira, que concebeu o sistema de ensino original de Brasília e implementou um rede de escolas-parques e escolas-classe em algumas cidades brasileiras. A concepção da escola-parque, onde não só os alunos mas também toda a comunidade pudesse se reunir e usar o equipamento, funcionando mais do que simplesmente como uma escola grande, é a idéia fundamental que estrutura a rede dos 21 CEUs. A noção de Anísio Teixeira da cidade educadora também permeia a sua idealização. Os Centros são uma praça de equipamentos, que aglutinam programas como teatro, piscina, berçários, classes de aula, biblioteca, quadras esportivas. Estas praças foram implantadas em 2003 em lugares cuidadosamente estudados nas extremas periferias do município de São Paulo e se tornaram rapidamente importantes referências para os bairros, quanto não as únicas. A EDIF, por meio dos arquitetos André Takiya, Alexandre Delijaicov e Wanderley Ariza, além de executar ordens, idealizou esse projeto de forma integrada.
Mais importante do que os próprios projetos dos arquitetos “colocados a disposição” era a prática deles cotidiana dentro do escritório público. O projeto não deveria ser apenas executado mas ser executado da melhor forma possível. Era, portanto, uma preocupação constate a integração com outros órgãos da prefeitura e a sistematização e padronização de algumas práticas. Assim poderia-se pensar em diminuir desperdícios, racionalizar processos, controlar o peculato, otimizar os gastos. Essas, porém, não são atitudes desejáveis para o governo, ou para os governos. O afastamento político colocado em prática pelo prefeito Gilberto Kassab escolheu a dedo alguns dos mais importantes arquitetos da EDIF, escolheu de forma mais eficiente aqueles que, longe de lá, poderiam transformar o escritório em um mero executor das incríveis decisões pensadas pelo executivo. Escolheu a dedo aqueles que ‘ousaram saber’! A atitude escancara um conflito real pouco discutido: Estado X Governo e que aqui assume uma forma bastante concreta. Estes arquitetos, mesmo que (e felizmente) de forma apartidária, se colocavam politicamente, sobretudo em suas práticas cotidianas. Junto como eles, outra arquiteta, filiada a um partido de oposição da prefeitura também foi colocada a disposição.
A EDIF, nos últimos anos, se transformou em uma espécie de escola. Talvez mais de uma centena de estagiários, passaram por lá, aprendendo a prática em um escritório do Estado. Os arquitetos colocados a disposição são uma referência fundamental para a formação ética em um trabalho público. A história provavelmente se encarregará de guardar a prefeitura Serra-Kassab-Matarazzo (6) com suas políticas higienistas, a EDIF será sempre guardada com os CEUs, e seus projetos humanistas, profundamente humanistas. Aliás, os governos passam, mas o Estado, este tende, diga-se, a permanecer.
(1) KANT, Immanuel. O Que é Esclarecimento?. http://www.espacoacademico.com.br/031/31tc_kant.htm
(2) Para Kant “uso privado da razão” é “aquele uso que um homem faz da razão em um posto civil que lhe foi confiado. Em alguns negócios que afetam o interesse da comunidade, um certo mecanismo [governamental] é necessário, em relação ao qual alguns membros da comunidade permanecem passivos. Isto cria uma unanimidade artificial que servirá para o cumprimento dos objetivos públicos, ou ao menos para proteger tais objetivos da destruição (…) Portanto, seria um completo infortúnio se um oficial militar (no cumprimento de seu dever ou sob ordens de seus superiores) quisesse questionar a adequação ou utilidade de suas ordens.”
(3) http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u583.shtml
(4) Muitas vezes os próprios arquitetos se recusavam a chamar os CEUs de Centros Educacionais Unificados, preferindo Centros de Estruturação Urbana ou Praça de Equipamentos
http://www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc151/mc151.asp
(6) http://pt.wikipedia.org/wiki/Angelo_Andrea_Matarazzo.
Post enviado por Gabriel Kogan
Filed under: arquitetura do território, espaço público | esfera pública, infra-estrutura e metrópole | 6 Comments
Tags:Anísio Teixeira, CEUs, EDIF, Educação, Escolas Públicas, Gilberto Kassab, Hélio Duarte, Kant, Prefeitura de São Paulo, São Paulo
Conheço pessoalmente a Silvana e o Takiya e sei que são profissionais que nunca cogitaram dissociar o exercício da arquitetura de um compromisso com a ética. Gostaria de dizer que a Prefeitura de São Paulo é quem sai perdendo, mas o fato é que somos nós, munícipes, que perdemos com o desmantelamento do Edif. Ainda que a integridade profissional dos colegas colocados à disposição não estivesse em pauta, seria injustificável a forma truculenta e arbitrária pela qual isto ocorreu. A quem interessa o afastamento de quadros técnicos altamente capacitados?
Oi Luiz,
Apesar da democracia se provar como um bom sistema político, estamos colhendo o fruto de uma democracia sem qualquer esclarecimento. Infelizmente, o Brasil continua a reproduzir a história sua sina colonial. O desmantelamento dos quadros técnicos interessa sim para uma classe política blindada, que há alguns séculos, tenta evitar a consolidação de um estado. O poder deve continuar suprindo o interesse de poucos, e essa é a visão de todos os partidos brasileiros, na verdade, isso está na gênesis da própria constituição política do país. Os últimos anos tem explicitado a sinuca que nos encontramos. A edif, na prefeitura de SP, pela qualidade de seu trabalho e pela formação profissional e ética dos que lá se encontravam, ainda se mantinha como um raro exemplo de ‘resistência’, ou melhor, de mínima contraposição dessa visão.
Por sinal, é sabido que, por trás desta decisão, existem pessoas de altíssimo escalão do governo da prefeitura, de pessoas ligadas inclusive ao gabinete do prefeito Parece coisa demais, para um relocação de 3 ou 4 profissionais numa prefeitura?
parabéns (sinceros) pelo protesto
todos sabemos o quanto a cidade perde com a saída dos quatro arquitetos de EDIF
para a maioria da população, porém, este gesto absurdo da gestão serra-kassab passará desapercebido. é importante que pelo menos em algum espaço ele seja objeto de indignação e crítica, seja registrado como sendo o ato monstruoso que foi
Oi Gabriel,
Obrigado pelo comentário. Apenas não considero esse texto um protesto uma vez que não temos perspectivas concretas de reversão desse quadro, pelo menos a curto ou médio prazo. De fato, seria interessante pensar o ciclo de apreensão da cidade e da arquitetura como um ciclo extenso, de 500 anos e, com a incrível aceleração da velocidade e dos meios técnicos, e também aqui na América, esse número talvez possa cair para 100 anos. Valendo-se das próprias palavras do Alexandre, é esse o tempo da arquitetura.
Aproveito para parabenizá-lo pelo seu trabalho não tão anônimo de abastecimento de temas arquitetônicos na wikipedia. A internet, lamentavelmente, carece de informações sobre esse assunto.
Nossa, muito interessante o texto. Não sabia que os dois arquitetos que participaram dos CEUs estavam envolvidos com o escritório público. É uma grande perda.