SESC Fábrica da Pompéia
Como ‘boas-vindas’ para aqueles que chegam e que ainda chegarão, segue uma espécie de memorial de Lina Bo Bardi para o SESC Pompéia, ainda inédito na internet. A obra e o texto de Lina são uma lição de arquitetura que perdura ainda jovem até hoje. Mais, é um paradigma de um posicionamento ético e político da arquitetura.
No documentário de Walter Lima Jr chamado “Arquitetura – A transformação do espaço”, de 1972. Lina aparece dando um depoimento no vão livre do MASP. Ela fala que para lá imaginou um “espaço feio” (em um sentido surpreendemente positivo), tosco, que pudesse ser completado, construído, ocupado pelo povo. Para o Sesc Pompéia, a arquiteta pensou em um espaço ainda mais “feio”, que aqui nesse texto ela chama de “Arquitetura Pobre”.
O projeto do SESC Pompéia foi em grande parte definido no próprio canteiro. Lina chegou a mudar seu escritório para o lugar durante a construção. Permeando os blocos que poderiam ser chamados de brutalistas, são colocados sutis elementos, que modificam o espaço da fábrica existente e incorporam ao projeto moderno um conhecimento e um saber-fazer popular. O espaço entre os galpões são tratados como uma rua, prolongação da calçada da Rua Clélia, e que estrutura a cidadela do SESC, Fábrica da Pompéia:
“Entrando pela primeira vez na então abandonada Fábrica de Tambores da Pompéia, em ’76, o que me despertou curiosidade, em vista de uma eventual recuperação para transformar o local num centro de lazer, foram aqueles galpões distribuídos racionalmente conforme os projetos ingleses do começo da industrialização européia, nos meados do século XIX.
Todavia, o que me encantou foi a elegante e precursora estrutura de concreto. Lembrando cordialmente o pioneiro Hennebique, pensei logo no dever de conservar a obra.
Foi assim o primeiro encontro com aquela arquitetura que me causou tantas histórias, sendo conseqüência natural ter sido um trabalho apaixonante.
Na segunda vez que lá estive, um sábado, o ambiente era outro: não mais a elegante e solitária estrutura Hennebiqueana mas um público alegre de crianças, mães, pais, anciãos passava de um pavilhão a outro. Crianças corriam, jovens jogavam futebol debaixo da chuva que caía dos telhados rachados, rindo com os chutes da bola na água. As mães preparavam o churrasquinhos e sanduíches na entrada da rua Clélia: um teatrinho de bonecos funcionava perto da mesma, cheio de crianças. Pensei: isto tudo deve continuar assim, com toda esta alegria.
Voltei muitas vezes, aos sábados e aos domingos, até fixar claramente aquelas alegres cenas populares.
É aqui que começa a história da realização do centro Sesc Fábrica da Pompéia. Existem ‘belas almas’ e almas menos belas. Em geral as primeiras realizam pouco, as outras realizam mais. É o caso do Masp. Existem sociedades abertas e sociedades fechadas; a América é uma sociedade aberta, com prados floridos e o vento que limpa e ajuda. Assim, numa cidade entulhada e ofendida pode, de repente, surgir uma lasca de luz, um sopro de vento. E aí está hoje, a Fábrica da Pompéia, com seus milhares de freqüentadores, as filas na choperia, o ‘Solarium-Índio’ do Deck, o Bloco Esportivo, a alegria da fábrica destelhada que continua: pequena alegria numa cidade.
Ninguém transformou nada. Encontramos uma fábrica com uma estrutura belíssima, arquitetonicamente importante, original, ninguém mexeu… O desenho de arquitetura do Centro de Lazer Fábrica da Pompéia partiu do desejo de construir uma outra realidade. Nós colocamos apenas algumas coisinhas: um pouco de água, uma lareira.
A idéia inicial de recuperação do dito Conjunto foi a de ‘Arquitetura Pobre’, isto é, não no sentido de indigência mas no sentido que exprime Comunicação e Dignidade máxima através dos menores e humildes meios.
Depois de cinicamente julgar esgotados o conteúdo e as possibilidades humanas do Movimento Moderno na arquitetura, aparece na Europa um novo lançamento: o Post-Modern, que pode ser definido como Retromania, o complexo da importância frente à impossibilidade de sair de um dos mais estarrecedores esforços humanos no Ocidente. A vanguarda nas artes vive comendo os restos daquele grande Capital. A nova palavra de ordem é: “chupar ao máximo os princípios da documentação histórica reduzidos a consumo”. A Retromania impera, na Europa e nos Estados Unidos, absolvendo criticamente os penetras da arquitetura, que, desde o começo da industrialização gratificam as classes mais abastadas com as reciclagens espirituais do Passado. Cornijas, portais, frontões, trifórios e bífores, arcos romanos, góticos e árabes, colunas e cúpulas grandes e pequenas nunca deixaram de acompanhar num coro baixinho, discreto e sinistro, a marcha corajosa do Movimento Moderno brutalmente interrompida pela Segunda Guerra Mundial.
É história velha. Estão voltando os arcos e as colunas do nazi-fascismo, a história tomada como Monumento e não como Documento. (Michel Foucault: “L’Histoire est ce qui transforme dês Documents em Monuments”. É justamente o contrário: a História é aquilo que transforma os Monumentos em Documentos. Claro que Monumento não se refere somente a uma obra de arquitetura, mas também as “ações coletivas” de grandes arranques sociais).
Conclusão: estamos ainda sob o céu cinzento do pós-guerra. “Tout est permis, Dieu n’existe pás”. Mas o que existiu de verdade foi a Guerra, que ainda continua, como continuam as grandes resistências.
Tudo isso pode ser julgado uma premissa exagerada para a apresentação de uma simples cadeira de teatro-auditorium, mas esta nota antecipada sobre os equívocos europeus do Post-Modern (o Movimento Post-Modern, nascido nos Estados Unidos, adquiriu importância internacional na última Bienal de Veneza, reacionário e anti-atual confunde o verdadeiro sentido da história, com os duvidosos retornos ao historicismo) é a esperança que o Brasil não enverede mais uma vez ao mesmo caminho de sociedades culturalmente falimentares.
Por quanto se refere à dita cadeirinha, toda de madeira e sem estofado, é de se observar: os Autos da Idade Média eram apresentados nas praças, o público de pé e andando. Os grego-romanos não tinham estofados, eram de pedra, ao ar livre e os espectadores tomavam chuva, como hoje nos degraus dos estádios de futebol, que também não tem estofados. Os estofados aparecem nos teatros áulicos da cortes, no setecento e continuam até hoje no “confort” da Sociedade de Consumo.
A cadeirinha de madeira do Teatro da Pompéia é apenas uma tentativa para devolver ao teatro seu atributo de “distanciar e envolver”, e não apenas de sentar-se.
Uma galeria subterrânea de ‘águas pluviais’ (na realidade o famoso córrego das Águas Pretas) que ocupa o fundo da área da Fábrica da Pompéia, transformou a quase totalidade do terreno destinada à zona esportiva em área “non edificandi”. Restaram dois ‘pedaços’ de terreno livre, um à esquerda, outro à direita, perto da ‘torre-chaminé-caixa d’água’ – tudo meio complicado.
Mas, como disse o grande arquiteto norte-americano Frank Lloyd Wright: ‘As dificuldades são nossos melhores amigos’.
Reduzida a dois pedacinhos de terra, pensei na maravilhosa arquitetura dos ‘fortes’ militares brasileiros, perdidos perto do mar, ou escondidos em todo o país, nas cidades, nas florestas, no desterro dos desertos e sertões. Surgiram, assim, os dois ‘blocos’, o das quadras e piscinas e o dos vestiários. No meio, a área “non-edificandi”. E… como juntar os dois ‘blocos’? Só havia uma solução: a solução ‘aérea’, onde os dois ‘blocos’ se abraçam através de passarelas de concreto protendido.
Tenho pelo ar-condicionado o mesmo horror que tenho pelos carpetes. Assim, surgiram os ‘buracos’ pré-históricos das cavernas, sem vidro, sem nada. Os ‘buracos’ permitem uma ventilação cruzada permanente.
Chamei o todo de ‘Cidadela’, tradução da palavra inglesa “goal”, perfeita para um conjunto esportivo.
Na área “non edificandi” pensei num grande deck de madeira. Ele corre de um lado ao outro do ‘terreno proibido’ em todo o seu comprimento; à direita, uma ‘cachoeira’, uma espécie de chuveiro coletivo ao ar livre.
Meu grande amigo Eduardo Subirats, filósofo e poeta, diz que o conjunto da Pompéia tem um poderoso teor expressionista.
É verdade e isto vem da minha formação européia. Mas nunca esqueço o surrealismo do povo brasileiro, suas invenções, seu prazer em ficar todos juntos, de dançar, cantar. Assim, dediquei meu trabalho da Pompéia aos jovens, às crianças, à terceira idade: todos juntos.
Tudo aquilo que os países ocidentais altamente desenvolvidos – incluímos nesses países também os Estados Unidos – procuraram e procuram, o Brasil já o detém, é a mínima parte de sua cultura.
Somente que: o detentor desta total liberdade do corpo, desta desinstitucionalização, é o POVO, esse é o modo de ser do Povo Brasileiro, ao passo que, nos países ocidentais altamente desenvolvidos, é a classe média (incluindo nesta classe um certo tipo de intelectual) que procura angustiosamente uma saída de um mundo hipócrita e castrado cujas liberdades eles mesmos destruíram há séculos.
A importação para o Brasil deste sentimento de procura estéril e angustiada é um delírio que pode levar à castração total.
Nas grandes civilizações do Extremo Oriente como o Japão e a China, a postura cultural do corpo (corpo como “mente”) e o exercício físico coexistem. No Brasil coexistem também, só que não existem na classe media, e o verdadeiro problema é uma ação para o auto-conhecimento de baixo para cima e não de cima para baixo.
A respeito do Centro da Pompéia, o Centro Esportivo é o Centro Esportivo, Físico, dedicado especialmente aos jovens das padarias, açougues, quitandas, supermercados, lojas e lojinhas que os freqüentavam antigamente como eu os vi em ’76 e ’77, e que hoje sentem-se defraudados. Para Homens e Mulheres, o domínio físico tem limites de idade. Para as crianças também, que poderão ocupar o espaço desde o começo definido como “Palestra”, no “Estudo” Espaço NOBRE, no sentido latim da palavra, espaço também dedicado a festas, reuniões e dança. Os espaços de um projeto de arquitetura condicionam o homem, não sendo verdadeiro o contrário, e um grave erro nas determinações e uso desses espaços pode levar à falência toda uma estrutura.
O enorme sucesso desta primeira experiência na Fábrica da Pompéia denuncia claramente a validade do “Projeto Arquitetônico” inicial.”
BARDI, Lina Bo. Instituto Lina Bo e P.M. Bardi. 1993. Org. Marcelo Carvalho Ferraz.
As belas fotos cedidas são de Rafael Craice (http://www.craice.com/rafael e http://flickr.com/photos/craice/)
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