carta aos amigos
Caros Priscyla e Paulo,
Algo sobre nosso blog me deixa de alguma maneira angustiado. A imagem dispersa construída a partir dos textos que se acumulam, aparentemente fazendo um turbilhão sem sentido de referências, em um jogo pós-moderno desprezível. A visitação do site, nos chama a atenção para sua dimensão pública, construída por acaso, e da qual nós parecemos de fato nos lixar, ou nos divertir de forma hedonista pelos números estatísticos. Mesmo sabendo, que existe alguma linearidade em nosso percurso e uma interrelação muito forte entre os nossos percursos, o blog não se mostra assim e não parecemos muito preocupados com isso. Talvez se imponha, por essa confusão, por essa profusão, o distanciamento entre o texto e os leitores.
Em relação a ausência de preocupações sobre os fins e a imagem do fim, esta carta é uma exceção, e por isso é pessoal, dirigida a vocês. Um texto do Paulo, sobre a forma como os posts eram lançados e se relacionavam já discutiu de alguma forma esse assunto. Mas parece oportuno voltar ao tema; afinal, muitas vezes, gastamos nosso tempo em saudáveis discussões metalingüísticas, talvez como forma de formularmos sempre novos sentidos para os nossos percursos.
Em todo caso, em uma espécie de terapia, uma auto-análise, que os textos são capazes de provocar em mim durante seu processo de concepção, no ato da escrita; imaginei uma espécie de arqueologia da nossa memória. Na verdade, uma arqueologia da minha memória, sobre nós. Como uma maneira assim de achar um ponto conceitual, um símbolo, que me satisfizesse em nosso assíndeto. Algo como um termo de ligação perdido que bastasse enquanto analogia.
Entre o cinema e a arquitetura (porque, sem pensar demais, é sobre isso que falamos quase sempre) talvez em mim ressoe a figura de Fellini. Não apenas pela idolatria de meu pai (e também de minha mãe) pelo cineasta, mas mais pela concepção de arte de seus filmes, pelo imaginário construído que, nesse caso, reverbera além do acender das luzes da sala de cinema. Fellini me lembra que para nossas vidas bastaria ver um filme, ouvir uma música, ler um livro, apreciar um edifício, amar uma mulher. Bastaria se esse filme fosse um filme de Fellini, se fosse uma música do João Gilberto, se fosse um livro de Cortazar, um edifício da Lina…
Fellini talvez seja uma resposta fácil demais. Seria como assistir Ensaio de Orquestra embriagado por vinho japonês ou adormecer no final de 8 1/2. E se a pergunta a ser feita fosse: onde nos encontramos aqui nesse blog? Não acho que seria nem em Roma, nem em Rimini, nem em São Paulo. Acho que aqui nos encontramos em Passaic. Como esta cidade insignificante, na periferia de New Jersey, poderia ser a liga, o roux do molho, do nossos textos para mim? Entre o cinema e a arquitetura, talvez haja uma mediação, o meio da arquitetura, e o meio do cinema. Algo que poderia ser dito de maneira simplória demais como “representação” (espero que a metalinguagem não enoje vocês pelo exagero que aqui se apresenta). Nada disso me levaria a Passaic. Mas o território me leva a Passaic, a arquitetura assim como eu a entendo. O cinema, a representação, a linguagem, o território, a representação do território, a representação do cinema, a representação da representação, o território da representação, o território no cinema, o território do cinema, o cinema do território e a impossibilidade de conter o todo. Tudo isso me leva a Passaic e Robert Smithson e uma perspectiva crítica sobre as nossas cidades e, nem ele poderia imaginar, sobre São Paulo e a América. O caracter anti-monumantal desse blog e a “lenta-luta”.
“Ao invés de nos conduzir à lembrança do passado, como fazem os antigos monumentos, os novos monumentos parecem nos fazer esquecer o futuro. Ao invés de serem feitos de materiais naturais, como mármore, granito, ou outros tipos de rochas, os novos monumentos são feitos de materiais artificiais, plástico, cromo e luz elétrica. Eles não são construídos para as Eras, mas contra as Eras. Eles estão antes envolvidos no fracionamento sistemático do tempo até as frações de segundo, do que na representação de longos espaços de séculos. Tanto passado como futuro estão posicionados em um presente objetivo. Esse tipo de tempo tem pouco ou nenhum espaço; ele é estacionário e inerte, está indo a lugar nenhum, é anti-Newtoniano, assim como é instantâneo e vai contra as rodas do tempo.” (1)
Tudo isso me leva a minha história em Passaic, a nossa história por lá, a história…
Abraços,
GK
(1) SMITHSON, Robert. “Entropy And The New Monuments”. In: “Robert Smithson: Collected Writings”. University of California Press, 1996.
http://saisdeprata-e-pixels.blogspot.com/2008/11/passaic-as-runas-do-futuro.html
http://www.njn.net/artsculture/starts/season05-06/2402smithsonmonumentspassaic.pdf
Post enviado por Gabriel Kogan
Filed under: arquitetura do território, cinema, cinema e cidade, espaço público | esfera pública, fellini, infra-estrutura e metrópole, robert smithson | 2 Comments
Gosto da polarização possível entre a imagem-colagem do blog e o percurso através de suas ruas devassadas. Que pareça árido ou banal ou fútil – desprezível – ao visitante ocasional que procura apenas atender a uma pesquisa de estudos ou negócios; mas que revele fissuras e buracos potentes para quem tentar percorrer, na duração dos intervalos, o acúmulo de anotações dispersos pelo blog.
Se for para falar em Fellini, tanto mais em 8emeio que em Roma, o fragmento impresso pelo vazio mais que o mosaico transbordante. E se for Passaic, antes essa Passaic platina ligada por taxistas simpáticos e bebida de ursinhos gummy.
Talvez já um tanto batida, a imagem de uma colcha de tear corresponde a minha associação mais imediata aos textos aqui produzidos, aos percursos que como fios, ora se entrelaçam, ora se perdem, desfiados, sem acabamento, numa das extremidades da colcha.
Se isso incomoda, gera distanciamento, há, no todo, uma ‘sinceridade’; uma correspondência efetiva com o modo com que lidamos com ‘nossos estímulos’, seja um filme de Fellini, um texto de Cortazar, uma música…
Coloco o termo ‘estímulos’ pq, invariavelmente, ligo isso à percepção. Usando seus próprios termos, na arqueologia da minha memória sobre nós, dos possíveis pontos de encontro, sobressai uma inquietação, uma busca por um espaço que contemplasse estímulos múltiplos. Como enquadramos aquilo que nos chega, como isso se revela, a especificidade de como isso se dá individualmente propicia a intermitência dos fios. Quantos outros fios, de leitores desavisados, ou daqueles que com certa periodicidade acompanham os mais variados posts são possibilitados por essa colcha q parece nunca ver seu arremate.
Talvez Passaic, nesta colcha, seja fio esquecido, ou nó entre percursos que, uma vez desfeito, permita outras combinações cromáticas.