Seis pontos sobre a casa latino-americana contemporânea

23abr10

Segue texto inédito em português escrito para a revista japonesa GA House do fotógrafo Yukio Futagawa. O texto foi publicado em inglês e japonês p. 322 a 326.

“Seis pontos sobre a casa latino-americana contemporânea

Gabriel Kogan – 2008 – Publicado originalmente na GA House 101

América 1. Não há uma unidade política, climática, lingüística, cultural ou paisagística na América Latina. O conceito de América Latina, a princípio pode parecer por vários motivos quase abstrato, apesar de algo que tem sido entoado freqüentemente como a consciência latino-americana. Num corte transversal hipotético no continente, podemos perpassar por florestas tropicais, cerrados, os chacos, desertos e a cordilheira andina; e, nessas paisagens, situações culturais bastante distintas. A América Latina não é, em vários aspectos, uniforme e, portanto, não há também propriamente uma completa unidade da produção arquitetônica. Observando as próprias produções nacionais, encontramos uma grande diversidade de “escolas”, e diferentes “arquiteturas”. No entanto, a reincidência de procedimentos arquitetônicos comuns entre os diferentes discursos, linhas de projeto e situações (sobretudo políticas), traça uma imagem dessa arquitetura, e como esta se mostra para dentro de suas fronteiras e para o mundo. A arquitetura latino-americana, principalmente se observada a partir de seu programa mais comum, o residencial, desenvolve características peculiares e insistentes. A identidade própria, ou a construção dela, é menos forte do que pode-se supor inicialmente. Esse processo desenvolve-se, historicamente, através de criações e adaptações, nem sempre bem sucedidas, para outra realidade, do modernismo internacional, pós-modernismo e, hoje, sobretudo, de um formalismo moderno. O conceito de “Latino América”, é um desejo e um discurso sobre a possibilidade de união de povos que compartilham problemas semelhantes, mais do que um conceito que encontra provas materiais de sua existência. Remontar esse conjunto de idéias e procedimentos reincidentes e também de algumas soluções espaciais e construtivas, remonta um esboço de uma imagem da arquitetura latino-americana contemporânea e um desejo antigo de sua formulação.

Natureza 2. Ao contrário da metodologia projetual européia mais recorrente, feita através do trabalho volumétrico e do uso de modelos, uma metodologia projetual bastante difundida e elaborada na América Latina, sobretudo no Brasil, associa-se ao desenho em corte. O levantamento topográfico do terreno é fundamental para a definição do raciocínio arquitetônico. A casa então constrói-se a partir das cotas estabelecidas, reconstruindo o solo. Há um desejo de construção de uma nova natureza, que se contrapõe a existente. A arquitetura não desaparece: ela estabelece um confronto a partir de uma questão tectônica. As novas cotas não apenas trabalham as alturas de diferentes andares, mas sutilezas de patamares que organizam o programa humano. As casas de Paulo Mendes da Rocha de Catanduva (não construída) ou sua própria residência no bairro do Butantã em São Paulo; a Casa de Vidro, de Lina Bo Bardi; a Casa das Canoas, de Oscar Niemeyer, na qual o arquiteto projeta a partir das rochas existentes no terreno em declive; e a Casa del Risco de Francisco Artigas, no México; aparecem como fortes referências modernistas para a arquitetura contemporânea. São exemplos paradigmáticos radicais desses procedimentos projetivos. A arquitetura chilena, talvez por causa da formação morfológica de seu território, debruça-se também sobre esse tema. A relação da arquitetura e da paisagem a partir desse raciocínio não apenas traz a natureza para dentro da construção, mas, ao ser transformada, torna-se o próprio projeto.

Matéria 3. Há um encontro de tradições no uso dos materiais na arquitetura latino-americana contemporânea: os materiais modernos (como o concreto armado aparente) juntam-se a outros materiais de arquiteturas locais (como o barro, a terra, a palha, o junco). O concreto, a terra e as fibras naturais são usadas com liberdade porém carregando um peso histórico. A tradição moderna encontra-se com a tradição colonial, recuperando uma discussão fundamental, mesmo que aparentemente abstraída: o colonial, que em suas políticas impuseram graves conseqüências aos países latino-americanos, remete também a um termo usado por arquitetos e teóricos como contraponto e subsídio de uma nova arquitetura, moderna. Os materiais coloniais e locais, porém, aparecem antes do que provedores de uma estética autônoma, como oportunos construtivamente e ambientalmente, aproximando a arquitetura de uma vida cotidiana. O concreto sugere uma expressão rústica e moderna, numa eterna referência corbusiana. Há uma predileção pelo o uso de materiais sem revestimentos, brutos: a beleza do material respeita o tempo e seu envelhecimento e é uma tentativa de um manifesto que nem sempre encontra ressonância na prática. Se por um lado é verdade que o custo de uma construção recai sobretudo no revestimento dela; por outro, a cultura construtiva acaba por encarecer a execução de materiais aparentes. A construção civil, pouco acostumada com essa expressividade arquitetônica, resolve usualmente da forma mais barata e rápida, sempre a partir do princípio do mal-feito e revestido. Nesse sentido, o emprego do concreto armado é um dispendioso artifício arquitetônico. A aparência do material, no entanto, estabelece um diálogo com a cultura, permanece como signo e propõe uma nova história para as novas cidades com novas marcas do tempo em sua superfície.

Construção 4. A qualidade, os custos e a quantidade de elementos e peças industriais inviabiliza a adoção desses sistemas para a produção de habitação em países periféricos. Para clientes e arquitetos rigorosos, apenas uma pequena parte da construção de uma casa pode utilizar componentes industrializados. Paralelo a isso, o canteiro tem sido sistematicamente negligenciado pelos arquitetos contemporâneos. Não se trata de um mal localizado, mas as contradições da prática construtiva se mostram particularmente agressivas em países com baixa industrialização da construção civil. A conseqüência direta é uma grande desorganização do canteiro de obras e precárias condições de trabalho. O desenho explicita um desejo do arquiteto, muitas vezes, sem a preocupação de quem o construirá e como será concretizado. O conhecimento do saber fazer popular, do artesão, em extinção na globalização, ainda resiste em alguns países e é importante para a execução de certos detalhes, mas o poder criativo destes artesões é pouco aproveitada pela cultura arquitetônica. Concebida a partir da relação arquiteto-cliente, a casa latino-americana é moldada in loco, sendo uma peça única de design, uma obra de arte. Esse quadro da construção civil e sua relação com a arquitetura, numa escala nacional, impede que os projetos possam ser consideradas protótipos para a habitação suprida em grande escala num futuro hipotético.

Planta 5. A arquitetura latino-americana residencial em evidência na última década demonstra uma busca pela simplificação formal. Três tipologias modernas tem sido exploradas e bastante desenvolvidas: variações sobre a idéia da casa sobre 4 pilares, a casa em torno de um pátio e a casa organizada em dois volumes perpendiculares, em T ou em L. A casa em 4 pilares e suas variações demonstra uma preocupação arquitetônica com a clareza estrutural das edificações e uma decantação da idéia de casa. A estrutura é reduzida ao essencial e os 4 pilares são a imagem metafórica disso. A casa pensada a partir da idéia de um pátio é oportuna para a construção de uma arquitetura introspectiva, que tem como forte referência um dos principais mestres latino-americanos, o mexicano Luis Barragán. Já a casa em dois volumes organiza-se geralmente em um paralelepípedo elevado, em que o andar térreo é ocupado pela sala e o primeiro piso pelos quartos; o outro volume comporta a cozinha e os serviços. Grandes aberturas fazem uma continuidade espacial entre o jardim e a sala e possibilitam eficientes ventilações cruzadas. O programa da casa contemporânea, no entanto, mostra-se como um problema para a arquitetura: a exigência de áreas de serviços grandiosas e programas expandidos, extensos e banais. Trata-se de um luxo que a arquitetura está submetida e esforça-se para contemplar, sacrificando a própria criação.

Política 6. A arquitetura latino-americana, não raro, se constituiu a partir de uma discussão sobre as condições urbanas desses países, sobre as políticas coloniais impostas, e sobre como a própria arquitetura pode ser uma “arte social”. Paulo Mendes da Rocha, referindo-se a história do Homem, diz: “A América é moderna desde sua inauguração”. Na América Latina o pensamento moderno arquitetônico desenvolve-se junto a situações urbanas, muitas vezes, miseráveis e políticas públicas sequer próximas de um estado de bem estar social. Trata-se de uma questão política e é no ‘habitar’ que as cidades latino-americanas demonstram suas maiores fraquezas. A pergunta “comoonde se habita as cidades latino-americanas?” desdobra-se imediatamente em outra: “dada a escala dos problemas e a constituição moderna das cidades, comoonde devemos habitá-las?”. Por ocasião da visita do suíço Max Bill à São Paulo em 1953 e suas duras críticas sobre a até então aclamada arquitetura brasileira, levantou-se a questão da função social do arquiteto e a possibilidade inerente de que caísse num “espírito acadêmico modernizado” ou numa “arte decorativa”, de inquestionável qualidade. Pouco mais de 50 anos depois, com uma crescente produção da arquitetura latino-americana pelo mundo, esse debate crítico encontra-se esvaziado e as cidades deparam-se com uma carência sobre a possibilidade do arquiteto “desempenhar um papel útil na sociedade”. Incorre-se ao risco não apenas ainda da aplicação de “arquiteturas” estrangeiras inadequadas mas também de mera reprodução de fórmulas mágicas latino-americanas, numa iminência de simulacros do próprio passado.”

Post enviado por Gabriel Kogan

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One Response to “Seis pontos sobre a casa latino-americana contemporânea”

  1. 1 Cramunha

    Parabéns Gabriel.
    Tão jovem e tão lúcido nas colocações.
    Creio que você fala no texto de apenas uma parte da arquitetura latino-americana. A que faz ou que convive com o fazer.
    Não é uma crítica,s apenas um apontamento. O mundo é vasto, para todos os lados.
    De qualquer maneira, meus sinceros parabéns. Tenho encontrado ocasionalmente com textos seus e torço para que isso seja cada vez mais constante.
    Um grande abraço!


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