Bienal e Perversidade

24set10

1-     Prefiro não comentar a 29ª Bienal de São Paulo. Ao invés disso, discuto aqui apenas uma obra da exposição e, possivelmente, meu comentário pode ser tomado como analogia de todo o resto.

2-     A obra em questão não é propriamente uma obra, mas sim o espaço dado à pichação em um lugar periférico e escondido da exposição, próximo dos grafismos de Mira Schendel. Disse que não se tratava de uma obra, mas na verdade se trata. É antes de tudo uma obra da curadoria.

3-     Apenas um idiota não aceitaria o convite para jantar no palácio do Rei. Se alguém recebesse um convite para ir a um banquete real e declinasse esse convite, eu diria apenas uma frase: “você é um idiota”. Todos iriam, e todos estariam corretíssimos em ir ao banquete.

4-     A participação dos pichadores na última Bienal talvez tenha sido um dos momentos mais corajosos da arte brasileira nos últimos anos. Porque foi corajosa, foi bela. Talvez tenha havido uma “depredação do patrimônio público”, de fato. Mas o que é isso comparado ao preço de uma grande exposição reservar um andar inteiro para o vazio? É isso que fazem por ai com espaços vazios, picham. Nada que uma tinta branca não recomece o ciclo de guerra. O ato foi um grito. O grito é um esboço.

5-     A obra (ou não-obra) em questão da 29ª Bienal foi exposta em folhas de papel tamanho A4, em técnica reproduzível similar ao Xerox. Eu nunca tinha visto pichação em papel sulfite. Não seriam antes exercícios caligráficos ou coisa do tipo?

6-     A obra (ou não-obra) em questão é acompanhada do seguinte texto reproduzido aqui ipsis litteris: “A pixação em São Paulo está presente na Bienal por meio de fotografias e vídeos que documentam ações dos pixadores na cidade e também por coleções de tags. São estratégias de documentação que não se confundem com a pixação propriamente dita, mas ajudam a compreender sua inscrição física e simbólica em ambientes de disputa, além de lembrar que nem tudo que é arte o campo institucional pode abrigar com certeza”.

7-     Se conseguirmos abstrair a terrível qualidade da redação do texto curatorial iremos descobrir quais são os termos existentes no convite do Rei para o jantar em sua casa. Ao aceitarmos o convite do Rei não sabemos, e é natural que não saibamos, os termos desse convite, e nem o cardápio que o Rei servirá no jantar. Não sabemos, sequer, se não seremos nós que seremos servidos como prato principal. É como se ganhássemos um relógio.

8-     O texto curatorial diz que a obra é uma coleção de tags. Infelizmente, sou tão ignorante em pichação quanto sou em arte contemporânea e não sabia o que eram ‘tags’. Por meio de minha operadora de celular consegui descobrir dentro do próprio edifício da Bienal que ‘tags’ são os tipos de letras típicas da pichação. Também não sabia que os ‘tags’ poderiam ser colecionados, como são colecionados os quadros nas galerias. Não entendo, de qualquer forma, como os ‘tags’ poderiam ser considerados formas de documentações ou um trabalho em si como são os trabalhos expostos na Bienal (“É arte!”). É o mesmo que dizer que as fontes Helvetica ou a Frutiger são a própria arte gráfica moderna, ou que elas são formas de documentação da arte gráfica moderna. Não faz sentido.

9-     Pelo que eu entendo da pichação ela está viva na cidade de São Paulo e é uma reação, talvez pouco erudita, de uma situação urbana. Porque documentá-la? Porque documentá-la na Bienal? É isso que gostaria de saber.

10-  A única palavra que consigo achar sobre o termo do convite do Rei é “perversidade”. É de uma perversidade sem tamanho por parte da curadoria colocar, quase enjaulando, a pichação como documentação em A4 e Xerox em duas paredes brancas e dizer, “isso é arte” (mesmo que seja arte que o “campo institucional” não possa abrigar; como quem se desculpa, quase se justificando de forma constrangida). Perversidade é verter para fora. Fora do contexto. Por quê verter assim? “Fui convidado pelo Rei para um jantar mas quando cheguei lá descobri que o jantar seria eu”, dizia o finado.

11-  Em Mil Platôs, Gilles Deleuze e Félix Guattari propõem, em uma de suas abordagens espacializadas das relações de poder, existência de Máquinas de Guerra e Dispositivos de Captura. As Máquinas de Guerra são formas nômades de combate e que agiriam de maneira difusa e incontrolável. As Máquinas de Guerra teriam a potencialidade de implosão de um sistema. Já os Dispositivos de Captura agiriam em oposição às Maquinas de Guerra. São instituições estáticas, de difícil locomoção e que zelariam pela ordem. É papel dos Dispositivos de Captura neutralizar as Máquinas de Guerra. A melhor analogia de um Dispositivo de Captura é o Estado.

12-  No caso específico dessa obra, as Máquinas de Guerra são as verdadeiras pichações (como aquelas que aconteceram na última Bienal) e o Dispositivo de Captura é a própria Bienal. Estou convencido (e foi o texto curatorial que me convenceu disso) que foi o medo que moveu os curadores. Foi por medo que convidaram os pichadores para a exposição. Imagine pichadores correndo com seus sprays incontroláveis pelo labirinto da exposição, pichando as Miras. A guerra de classes e a política invadindo a arte, invadindo o prédio e os jornais. Não! “É melhor não corrermos esse risco”. “Precisamos fazer com que eles façam parte da exposição”. Se os Dispositivos de Captura não podem lutar contra, eles englobam as Máquinas de Guerra, acolhem em seus guarda-chuvas. “Assim elas não criarão problema”.

13-  Não acredito que esse texto curatorial possa ser abstraído ou desculpável. Suas intenções e valores éticos estão revestidos de uma péssima gramática e de camadas de retórica, mas são visíveis criticamente. Talvez pudéssemos dizer que uma instituição que quer recuperar o prestígio não pode cometer um deslize desses. Talvez pudéssemos dizer isso. Mas talvez fosse melhor dizer que a Bienal está apenas cumprindo seu papel como instituição: capturar as Máquinas de Guerra. Podemos nos perguntar: “é essa a relação entre arte e política que queremos”? Talvez eu seja marxista demais e pense descalabros anacrônicos, mas acredito que, por de trás do intuito de agir como Dispositivo de Captura há, em essência, a vontade puramente burguesa da Bienal em tentar esconder a luta de classes como se de fato ela não exista ou nunca tenha existido.

14-  ‘Pixação’ não consta no dicionário, ‘pichação’ sim. Os Dispositivos de Captura seguem a norma culta da linguagem.

Nota publicada no dia 26/09/2010: resistência, http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,duas-pessoas-sao-presas-apos-picharem-obras-na-bienal,615287,0.htm

Texto escrito por Gabriel Kogan

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One Response to “Bienal e Perversidade”

  1. 1 Cláudio de M. Senna

    Espalhar merda pelas paredes é uma manifestação típica de crianças com distúrbios afetivos. Este comportamento é uma patologia, objeto de estudo da Psiquitria, e não da Estética. O “pixo” é equivalente ao cocô. Muda a faixa etária e o contexto é ampliado, do doméstico ao urbano. Por mais que a Arte venha sendo vilipendiada com forma suprema de conhecimento, a ninguem ocorreria tentar equiparar o pixador ao artista. A estratégia da curadoria foi, evidentemente, ao “capturar” os pixadores, trazendo-os para o ambiente da Mostra, tentar CURAR, mostrar que existem formas mais civilizadas de manifestação além do ato de defecar nas paredes. Porém, dar uma folha A4 aos pichadores equivale a oferecer um rolo de papel higienico a crianças com distúrbios. Parece que a tentativa foi inóqua. Haveria que encaminhar os pichadores a tratamento psiquiátrico, e promover uma maior reflexão sobre a qualidade do ambiente familiar ( A propósito veja-se o livro “Não temas o Mal”, de Eva Pierrakos e Donovan Thesenga, Ed. Cultrix, útil a todos que lidam com jovens )


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