A luta dos edifícios contra as águas
A idéia de um abrigo fechado, uma casa coberta, coincide com as origens mais remotas da arquitetura. O teto é a sombra que protege do sol, mas também a proteção contra chuva. Além do tradicional desafio técnico de vencer a força da gravidade, as construções humanas, desde suas origens, desafiam as leis da hidrologia. Se por uma lado é quase banal fazer uma cobertura que sombreie o espaço interno, é muito difícil e desafiador edificar uma cobertura estanque, que resista a água, que resista a umidade, que resista a chuva.
Durante milhares de anos, o Homem desenvolveu conhecimentos de proteção contra a água na cobertura e nas paredes de suas construções. São técnicas ainda hoje empreendidas como telhas de barro inclinadas para que as águas sejam drenadas rapidamente. O grande problema é que o conhecimento de estanqueidade praticado até o final do século XIX, pouco poderia ser aproveitado nos novos edifícios modernos, com grandes vãos e estrutura livre. O know-how de construção de coberturas teria que ser praticamente desenvolvido do zero e, mais importante, fazer parte da concepção da arquitetura. A conhecida ‘laje plana impermeabilizada’ se tornou ponto crítico do projeto.
Logo nas primeiras obras modernistas, os arquitetos descobriram que a luta contra as águas seria o maior desafio técnico da nova arquitetura. Três daqueles que seriam considerados os maiores do movimento moderno, Le Corbusier, Mies van der Rohe e Frank Lloyd Wright, enfrentaram terríveis problemas em relação a infiltrações de água em suas obras pioneiras e mais importantes. Problemas que persistiram, não só na história dessas construções, mas também em seus projetos seguintes.
A Villa Savoye, construída por Le Corbusier no final da década de 1920 tinha gravíssimos problemas de infiltração. A água entrava por todos os cantos da casa, paredes e lajes. Depois de longas discussões com o cliente, mais de uma década depois da conclusão do projeto, Le Corbusier assumiu a existência de problemas na obra. O desespero dos moradores fica latente nas cartas expostas hoje na própria casa.
A Farnsworth House de Mies van der Rohe enfrentou problemas similares. O arquiteto foi hábil em elevar a casa do solo, uma vez que o terreno sofria com inundações periódicas. O grande problema é que as infiltrações poderiam ocorrer pelos pilares que tocavam o solo (numa espécie de capilaridade) e também por cima, uma vez que a esbelta laje plana não poderia ser impermeabilizada adequadamente com a tecnologia da época.
As casas de Frank Lloyd Wright sofreram de problemas ainda muito mais graves, talvez por uma maior deficiência técnica do arquiteto. Praticamente todas as suas casas são consideradas inabitáveis por causa dos graves problemas de infiltrações. Pode parecer incrível, mas até hoje algumas construções não puderam ser recuperadas, permanecendo como um grande desafio técnico para os restauradores. Chove e entra água, é como o provérbio moderno: “cada casa tem sua goteira”.
No Brasil, uma casa contemporânea, de um grupo de jovens e excelentes arquitetos, enfrentou problemas similares, remontando as origens do movimento moderno e confirmando que o desafio técnico persiste. Essa casa poderia ser um estudo de caso da relação das águas no objeto construído. O partido arquitetônico do projeto sugeria um vão praticamente igual ao balanço (digamos que o vão fosse 10 metros e o balanço da estrutura também de 10 metros). Isso é algo exeqüível e muito facilmente exeqüível hoje em dia. Os problemas com as infiltrações se originaram, no entanto, dessa decisão projetual, aparentemente banal. O grande balanço em relação ao vão, que idealmente deveria ficar na proporção de 1 para 3 (ou seja o balanço, para cada lado, deve corresponder a 1/3 do vão totalizando uma fração de 1/5 do total da estrutura), quando projetado na proporção de 1 para 1 requer atenções redobradas. A casa em questão foi executada em concreto armado, muito suscetível a fissuras. O grande balanço com um vão pequeno, em estrutura metálica, seria algo, tecnicamente mais apropriado.
Estabelecido esses critérios e decisões iniciais, outros fatores intensificaram os futuros problemas que o morador e a casa enfrentaram. O calculista foi pouco hábil em definir coeficientes que poderiam amenizar o problema e, também, silenciou-se em comunicar o arquiteto sobre eventuais movimentações da estrutura. Os problemas se acentuaram com uma execução problemática, que não seguiu, entre outros, procedimentos padrões de impermeabilização e não utilizou uma fórmula apropriada para concretos arquitetônicos aparentes.
Todos esses casos da história da arquitetura mostram um desafio primário: a luta do homem contra as águas, mesmo dentro de casa, mesmo nos tempos atuais de incrível desenvolvimento técnico. Esses casos nos mostram que o projeto de arquitetura é quase sempre um protótipo, uma experimentação, suscetível a problemas. Arquitetos e clientes devem sempre considerar isso: cada novo projeto é um novo desafio técnico e possivelmente nem tudo sairá como se imaginou, se sonhou, se projetou. Podemos acordar durante a noite com uma goteira no meio do quarto.
Post escrito e enviado por Gabriel Kogan
Filed under: cidade | 11 Comments
Excelente, parabéns!
Lilian
Gabriel, o Reyner Banham discursa sobre a transferência de tecnologia da arquitetura pragmática das fábricas na América do Norte para a Europa, na época do modernismo heróico. O contato dos pioneiros da arquitetura moderna – Gropius, Mendelsohn, Le Corbusier, Mies – através de viagens e fotos levou a linguagem da racionalidade industrial para a abstração modernista. A tecnologia, contudo, não se transferiu da mesma maneira. O conjunto construído de Buffalo, citado pelo Banham no Concrete Atlantis, tem exemplos bem-sucedidos de lajes planas e estruturas com lajes protendidas, até.
Interessante isso. Sabemos que o modernismo, sobretudo no campo da arquitetura, não criou praticamente nada, nem do ponto de vista técnico, nem do ponto de vista conceitual. No máximo, pode-se dizer que deu um novo sentido para coisas que já existiam. A arquitetura industrial do meio do século XIX já anunciava todos os elementos depois vastamente usados pelo modernismo, para não dizer que as origens são ainda mais remotas.
Se olharmos a questão numa escala de tempo das construções humanas, no entanto, não apenas as arquiteturas industrias de 1800 e os pioneiros modernos, mas também as construções intensamente difundidas na segunda metade do século XX, a tecnologia de lajes planas é bastante recente e, por que não, ainda experimental. Com produtos de alta tecnologia hoje conseguimos manter uma laje estanque por 20 anos. Muito pouco comparados a coberturas que se mantém assim por milênios, sem qualquer manutenção.
só estava faltando o espelho d’agua mesmo! pronto…
Sentimos alívio por não estarmos expostos aos desastres tectônicos como os do Chile e Japão, nem precisamos pensar em bunkers para nos protegermos de ciclones. Nem mesmo o frio rigoroso frequenta nossas terras. Mas temos uma luta constante contra a umidade – veja nossas madeiras, elas sofrem muito mais do que as européias. O engenheiro Helio Olga considera o beiral, um elemento repulsivo para o modernista tradicional, um elemento chave para a manutenção de madeiras expostas. Recentemente criamos um desastre natural que hoje é o alagamento. Será que teremos que nos preocupar com a água por cima (que já é um desafio sem igual aqui no Brasil), como também nos preocuparemos com água por baixo? Será que veremos reflexos perenes na nossa arquitetura sobre isso no futuro?
Bom, um caso curioso:
http://lifewithoutbuildings.net/2009/07/the-making-of-a-make-it-right-house.html
Gabriel, que assunto interessante, com certeza daqueles que gera muita coisa para se pensar…o que mais me chama atenção é a forma com que é colocada a relação entre homem/casa e água, como dito: “desafio primário: a luta do homem contra as águas”, o mais interessante nisto, é que, se a moradia é a alternativa de se abrigar, de se adaptar ao meio em que se vive, não deveria existir uma luta entre os dois elementos e sim uma conciliação. O modernismo, toda esta concepção de viver e morar da selva de pedra vai de encontro a naturalidade da existência, daí, é mais facil acreditar que devemos lutar contra água do que ser parte de um mesmo processo. Acho fascinante a casa de Mies exemplificada pela foto, não tive a oportunidade de conhece-la ainda, mas ela é um sonho, pois estabelece uma interação, integração, conciliação com o meio em que ela se insere, e ela não passa de ferro e vidro…pura poesia. No mais, a água não impõe nada, muito menos, tem força para digladiar em uma gerra contra o homem. Água são gotas, é orvalho, cascata, que busca um caminho para fluir, resta indicar este caminho ou não se opor a ele.
Oi Emílio, permita discordar de mim mesmo e concordar com você, pelo menos em parte. Escrevi esse texto há 2 anos, e talvez as vezes é bom poder mudar de opinião. A luta contra a água é uma luta que muito pouco tem de heróica, ou mesmo positiva. A casa do Mies, como você bem notou é um bom exemplo. Acredito que isso seja uma exceção no modernismo, no entanto, que, por vezes, tentou forjar a luta contra a natureza, como forma de auto-afirmação. Isso de fato não diminui a grandesa do movimento, porque a colocação dessa questão – fundamental para a existência humana – já é algo relevante no campo da arquitetura. Eu preferia hoje ficar com uma parafrase de Harvey, ou mesmo antes, de Marx: a suposta dominação da natureza é, na verdade, uma dominação do próprio homem sobre ele mesmo.
Talvez não necessariamente mudar de opinião e sim apurar os conceitos… O mais interessante da postagem não é opinião propriamente dita, mas a busca pela qual o texto se propõe. Acredito que uma das condições mais significativas do movimento é justamente a compatibilidade entre o comportamento humano e a produção de arquitetura: uma busca bem incisiva de se readaptar, de se enquadrar em modelos e principalmente a vontade de perpetuar, de permanecer…abç
Muitas vezes eu gosto de reescrever o texto do blog, alterando o conteúdo já publicado. mas acho que esse não é o caso desse texto, pelo que eu reli. Talvez fosse melhor escrever uma resposta para ele mesmo. O meu mestrado é justamente sobre esse exato assunto, só que na escala urbana. A relação do Homem e da Natureza na cidade, a partir da questão das águas. Deixo para apurar os conceitos em um futuro texto síntese sobre essa pesquisa. Em todo caso, obrigado pelos comentários atentos! Abraços..
Gabriel, no próximo semestres inicio meu Projeto de Graduação. Então ando atento aos assuntos de interesse para definir o que farei em meus trabalho. A questão das águas é um tema em que me identifico muito e tenho interesse em aborda-la. Estudo arquitetura em Vitória-ES. Bom saber essa questão do seu mestrado, poderemos ter intercambio de conhecimento! Acabei por um acaso no blog, especificamente nesta postagem, mas vou explorar melhor o espaço. Até então obrigado e até brave…abç