Quatro Vigas – Solano Benitez

03ago11

“Esse projeto levou dez anos para ser feito. Dez anos para imaginar um quadrado. Isso mostra como a minha imaginação não é uma força extraordinariamente poderosa. O quadrado tem dois dos seus lados rodeados por um pequeno córrego. O córrego tem 0,60m ou 1,00m de largura e pequenas cachoeiras que fazem barulho. No interior do quadrado, cruza, em diagonal, outro córrego que desaparece poucos metros depois, onde as águas confluem para chegarem a um córrego maior.

O quadrado, com 9 metros de lado, é, na verdade, sinalizado por quatro vigas, cada uma se iniciando nos vértices e apoiadas com um só pilar, configurando um balanço de 1,50 metros para um lado e 7 metros para outro. O chão é uma superfície acidentada porque por aqui correm as águas. Toda a construção está muito particularmente vegetada por causa da presença dos córregos e da umidade que possibilita o crescimento de boas plantas. Este quadrado é então marcado por essas quatro vigas que tem a altura de um guarda-corpo e delimitam fortemente o interior.

No exterior do espaço das vigas plantei com meu apaixonado filho maior, ‘maestro Solanito’, folhas de samambaia muito próprias desse lugar. Depois, o que fizemos, foi colocarmos espelhos que fazem as vigas desaparecer. As vigas que estão no exterior marcam fortemente a presença do espaço e se entrelaçam com as espécies vegetais pequenas, próprias desses córregos.

Aproximando-se do quadrado e, pelo espaço livre que ficam entre uma viga e outra, finalmente se ingressa nele. A viga é feita com uma seção tal para que não tenha espessura ao ingressar. Quando se ingressa, a viga desaparece. Como a viga tem altura de 1,1m, mais ou menos, você não se olha no espelho – é a paisagem que entra com você nesse espaço. Esse espaço funciona com uma forte integração centrípeta: tudo se remete ao interior do quadrado. Mas chega um momento em que você desce e senta, porque no interior do quadrado, a sombra dessas árvores, ao som da água, há outra construção, feita também de concreto armado, uma fossa, que é, na verdade, a tumba do meu pai.

Eu demorei 10 anos para satisfazer esse pedido dele de ser enterrado aqui ao lado da nossa casa, de final de semana. Durante 10 anos eu tentei imaginar, utilizar, todas as receitas que o Homem tinha utilizado para enfrentar o tema da morte. Mas eu tinha pânico de pensar que meus filhos, muito perto dessa casa sonhada cheia de água e risos, tivessem a possibilidade de falar – uh! ali está o vovô! – e se celebrasse a dor da morte por cima da força da vida, porque a vida dele segue presente em nós, em nossos filhos e demais.

Então quando se ingressa no quadrado, nesse jogo de espelho, tudo começa agora a se converter em um integrador centrífugo, porque ele agora explode todas as imagens para universos que se ampliam e se ampliam sucessivamente. Na verdade, todo mundo pensa o espelho como o adminículo do Narciso – que bonito que eu sou, que maravilha. Eu moro dentro do meu corpo, e meu próprio corpo é o limite que me separa de onde eu habito, meu interior, de todo o demais. A única exceção que eu abraço quase com desespero é o espelho, porque no espelho eu estou fora, aí na frente. Por fim num plano de igualdade e simultaneidade de todo o demais.

Talvez no espelho nós tenhamos a máquina para ficarmos juntos com nossos amados, os ausentes, porque a austeridade da morte os tirou de nosso lado. Ou os amores impossíveis que não tivemos nem tempo nem espaço para acontecerem. Na verdade, eu apresentava um quadrado, mas é uma viga que, por acaso, se repete quatro vezes. Para o Homem tudo que se repete, perdura. Tudo o que se repete, perdura, é eterno. Tudo o que se repete, perdura, é eterno, portanto, é sagrado. Por isso que o futebol de Domingo é sagrado. Por isso que o sexo é sagrado, porque é feito de repetições. Por isso que jantar com minha mãe no sábado é sagrado, porque essa repetição faz, no meu interior, um vínculo com a permanência de tudo, todos os Homens, todos os sonhos, todas as vidas, que, nesse momento, atravessam minha existência. Essa maneira de pensar que tudo inaugura sempre um espaço, e outro e outro e outro: um universo onde todos possam habitar juntos, morar alguma vez, foi a maneira que eu encontrei de celebrar essa vida, celebrar que eu sou uma parte de alguém, e meus filhos continuam ainda sendo, repetindo essa essência da vida, e da vida, que é, finalmente, o motivo do amparo de nosso exercício. Ainda quando a morte tem que ainda ser tomada como um programa.

Minha mãe estabeleceu uma cerimônia em que, de vez em vez, os espelhos são limpos. Esse lugar é muito difícil de ser fotografado porque você sempre fica repetido, sua imagem está sempre muito presente. Mas é de uma amplificação tal que quando você está triste, na verdade, nisso a imagem fica com você. Mas basta que uns desses pequenos seres apareçam por aí, gritando, rindo, que desse lugar brotam milhares de crianças, meninos, que jogam o tempo todo, com uma intensidade muito forte. Eles dominam esse espaço.

Tirei lá uma foto de meu filho Solanito, há uns 10 anos atrás. Na verdade, ele está me olhando, utilizando o espelho para saber o que eu estou fazendo. Na verdade, eu o vejo, com os pés sobre a terra, e flutuando como ele mora nos meus sonhos.”

Solano Benitez, Palestra em  30/03/2009, auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP)

Post enviado por Gabriel Kogan

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4 Responses to “Quatro Vigas – Solano Benitez”

  1. que homem maravilhoso! cada segundo desses 10 anos valeram tudo!!

  2. 2 Paulo Takimoto

    O Solano Benitez deu essa mesma aula na pós (latto senso) da Escola da Cidade (e também com a presença do Paulo Mendes da Rocha) em abril. Já tinha visto esse vídeo e confesso que a aula na FAU USP foi mais bonita.
    O (belo) projeto das 4 vigas, pra mim, é menos arquitetura e mais arte.
    Sobre a arquitetura latino americana (moderna e contemporânea), fico perplexo como ela é deixada de lado nas faculdades (graduação) brasileiras.

  3. Muito bom. Tocante, de uma sensibilidade muito aguçada. Muito próprio inclusive para a proximidade ao dia dos pais, nos remete a essa corrente de vida que todos levamos em nós.


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