Um dia com Rem Koolhaas
O encontro era às 10 horas da manhã no hotel que ele estava hospedado em São Paulo. Antes da hora e depois de centenas de e-mails com assessoras, lá estava eu sozinho com um pequeno aparato de gravação. O próprio já estava no lobby com telefone celular em mãos. Entre muitas de suas famas e histórias que escutei nos breves dias finais que tive para preparar a entrevista estava o seu hábito de ficar no telefone todo o tempo. Meu nervosismo subiu, porque uma das lendas já se confirmava no primeiro instante e as outras eram bem menos amenas que essa: ele não costumava se dar muito bem com jornalistas. Agora não dava mais para voltar.
Ele perguntou se eu estava pronto e disse que podíamos começar antes a entrevista. Dispensei por ora o fotógrafo e a produção que chegou pouco depois: imaginei que não gostasse muito de flashes. Seria melhor conversar tranquilamente em um canto do lobby. Ele me indicou um lugar e desapareceu. Enquanto isso, fiquei observando alguns mapas na parede: “Hum… um mapa antigo da Holanda, que está escrito… Bélgica! Afe. Invasores. Espero que ele não veja isso”. Vinte minutos depois, no horário certo da entrevista, ele estava de volta. Rem Koolhaas, espécie de lenda viva da arquitetura. Sentou confortavelmente do meu lado, como quem pedisse uma conversa, mais do que uma entrevista. As perguntas estavam todas traduzidinhas no meu papel…
Os primeiros vinte segundos foram pavorosos. Já a noite, ouvindo no gravador a entrevista cometi mais erros de inglês em vinte segundos que uma criança que nunca fez aula. Vergonha. Depois a coisa pegou. Apresentei-me como arquiteto e jornalista e neto do arquiteto do São Vito… What? São Vito. Ah! Seguido de um olhar de aprovação e uma pergunta imediata: e como está o prédio? Foi demolido recentemente. O olhar de aprovação foi substituído por gestos de reprovação e alguns resmungos do tipo, “não acredito que demoliram esse prédio”. A conversa engrenou de vez. E meu roteiro de perguntas já tinha ido para o saco.
São Vito, São Paulo, Patrimônio Histórico, Manhattan, Política, Cidade Global, Sociedade de Mercado, Arquitetura Brasileira, Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Rotterdam no pós-guerra, Brasília. Eis que chegamos em Brasília e é Koolhaas que está me entrevistando, muito interessado nas questões da construção da cidade e nas pequenas estórias dos primeiros anos. Queria saber mais sobre a repressão nos canteiros de obras e as mortes na futura capital federal. Ele se disse especialmente interessado nas pequenas histórias que permeavam a cidade; como as seitas místicas que surgiam como respostas à racionalidade moderna ou o punk rock que vinha dos filhos revoltados dos diplomatas.
Eu quis interromper a entrevista porque pensei que já estava alugando demais seu tempo, mas ele falou que ainda podíamos conversar um pouco mais. Alguns mitos, sobretudo o fato de ele não tratar bem jornalistas foram caindo. Estava sendo cada vez mais gentil, em um comportamento muito educado e raro. Tudo depende de como se faz as coisas. E seguíamos sobre as lendas e histórias: Ele não se tornou arquiteto depois de ter vindo para o Brasil, simplesmente porque essa viagem nunca aconteceu. Ele viria, mas não veio. A viagem deu errado, mas… Bom. Isso fica para entrevista completa. Em todo caso, como assumiria horas mais tarde, ele se tornou arquiteto por uma verdadeira epifania.
Conversa vai e vem e uma revelação chocante quando chegamos ao assunto do edifício mais importante da história da arquitetura brasileira: seu sócio foi assassinado lá, bem no Pedregulho alguns anos atrás, vítima de um latrocínio de uma máquina fotográfica. Pois bem… Existia essa história por aí, mas diziam que foi um arquiteto do MVRDV. Pois não foi.
Ainda havia tempo para conversarmos sobre a construção da paisagem holandesa e sobre cinema, em especial sobre Fellini. Evitei minha última e tradicional pergunta depois de ter quase apanhado de um arquiteto italiano em outra ocasião: você morreria por uma cidade? Vamos pular essa.
A entrevista acabou e ele pediu para o fotografo ser rápido. Em 5 minutos o problema estava resolvido, quando chega Petra Blaisse. Conversamos mais alguns minutos com equipamentos desligados. Ele pediu para eu mostrar a foto do São Vito. Falei que ele deveria visitar o Pedregulho mesmo assim, que era algo importante de ser visto. Ele me contou que havia conhecido um arquiteto humilde e tímido chamado Eduardo Longo em um jantar que teve na noite anterior e queria saber se eu conhecia e quem era ele exatamente. Recomendei fortemente que visitasse a casa de Longo; Rem disse que havia um convite para isso na parte da tarde e que eu poderia ir junto. Petra disse que queria conhecer o Parque Ibirapuera e que estava interessada em Burle Marx. Mais uma vez, recomendei Reidy agora com seu Aterro do Flamengo.
Petra Blaisse se despediu e Koolhaas pediu para eu esperar um pouco mais. Ele voltou dez minutos depois com celular na mão e reiterou que gostaria que eu fosse ver a Casa Bola de Eduardo Longo com eles. Hans Ulrich Obrist chegou com algumas pessoas, inclusive uma amiga minha. Cidade grande, mundo pequeno. Todos foram para a Casa de Vidro da Lina Bo Bardi e eu fui almoçar na esquina.
Às quatro horas da tarde, cheguei na Casa Bola, agora com a comitiva completa incluindo o próprio Hans e sua câmera gravadora de mais de 2000 horas de entrevistas que ele sacode para todos os lados sem nenhuma preocupação de enquadramento. O portão estava aberto e entramos enquanto alguém cantarolava em inglês uma ária operística inventada na hora com as palavras: utopia, utopia.
Eduardo Longo nos esperava e foi inundado por inumeráveis perguntas sobre metabolismo e sobre cada detalhe daquela arquitetura. Longo não parecia acreditar muito no que acontecia. Depois de uma detalhada explicação de suas obras através de seu antigo site, seguíamos por um minucioso tour pela casa, tudo sempre gravado pela câmera louca de Hans Ulrich. A cada passo, toda a turma, sobretudo Rem e Hans, pareciam cada vez mais extasiados. Com um pensamento David Byrniano, tinham certeza que estavam descobrindo um novo Tom Zé que agora se chamava Eduardo. Era puro metabolismo brasileiro regado à cultura hippie verdadeira e permeado por uma documentação extensiva de todas as milhares de transformações da Casa Bola. De lado, me perguntaram se tudo aquilo era muito conhecido no Brasil e eles ouviram um sincero ‘não’ que esperavam: ninguém conhecia muito bem a obra de Longo em São Paulo. Falei para Hans Ulrich que ele deveria entrevistar o Tom Zé e ele disse que já havia feito isso no dia anterior. A casa era de fato fantástica, mas a reação da comissão a cada novo detalhe era ainda mais espetacular.
A coroação veio no final. Hans Ulrich mencionou o desejo de fazer um livro sobre a casa. Descemos para a parte antiga da casa, hoje uma escola de computação do filho do arquiteto. Hans se despediu correndo. Iria encontrar Paulo Mendes da Rocha. Koolhaas e Petra ficaram um pouco mais, muito agradecidos pela atenção de Eduardo Longo. Rem Koolhaas falou que aquela tinha sido a sua experiência arquitetônica mais forte dos últimos 10 anos.
Eduardo se despediu ainda surpreso pelo sucesso estrondoso. Ofereceram-me uma gentil carona para o hotel com o motorista da viagem, com inglês perfeito, muito melhor do que o meu ou mesmo de Rem. Você é da embaixada? NÃO. Ah, OK.
Comentei sobre o mestrado sobre gerenciamento hídrico na Holanda e Koolhaas aprovou dizendo que eu era esperto de estudar esse tema para São Paulo. Já se despedindo recomendei que comessem no Maní, que não iriam se arrepender, que era caro, mas não “fancy”: “we don’t like fancy things”. O motorista providenciou a reserva, mas não é para hoje porque é segunda.
*A entrevista foi feita para a revista Bamboo onde será publicada em breve.
Post escrito e enviado por Gabriel Kogan
Filed under: cidade, cinema e cidade, fellini, infra-estrutura e metrópole | 6 Comments
Tags:Arquitetura, Arquitetura Brasileira, Arquitetura Contemporânea, Arquitetura Moderna, Casa Bola, Eduardo Longo, rem koolhaas, São Paulo, São Vito
Caracas… que incrível! Leve invejinha do(s) seu(s) encontro(s)…rs
Ansioso pra ler a entrevista completa.
adorei a matéria! lavou-me a carente alma profissional!
Que bom ler um pouco mais sobre a visita do R.Koolhaas ao Brasil, e informações tão legais.
Espero que ele tenha sido bem assessorado aqui no Rio.
Curiosidade… quem foi o arquiteto italiano??? hahaha
tem a entrevista feita com ele?
Muito bom relato! estou ansioso para a entrevista.
Engraçado que escrevi para o Posto12 da Ana Luiza Nobre sobre o outro lado, nós do Rio de Janeiro que não tivemos acesso, vale dar uma olhada.
http://posto12.blogspot.com/
Grande abraço
Caro
Parabéns por seu comentário, que já destaquei no meu blog.
Agora espero ansiosamente pela entrevista.
Um abraço,