Anos de Escuridão
11 de Setembro. E quem escreve a história? E a quem ela pertence? Pois sim. Lembremo-nos dos fatos, sobretudo (sobretudo!), dos mais relevantes. Talvez não tenha sido 1968, França, mas sim 1973, Chile. Lembremo-nos de 11 de Setembro, de 11 de Setembro de 1973:
“(…) Atribui-se a um dos cúmplices de Hitler uma frase tristemente célebre: ‘Quando ouço falar de cultura, puxo a pistola.’
As pistolas foram puxadas no Chile no dia 11 de Setembro de 1973 e, se dispararam contra seres de carne e osso num genocídio do qual acabamos de ter novas abomináveis provas nesta Comissão, também atiraram contra aquilo que os fascistas, uma vez donos da rua, mais temem e mais odeiam: a palavra. A palavra feita livro, ou letra de canção, ou inscrição nas paredes. A palavra dos homens que se servem dela para ampliar seus limites, atingir a verdadeira liberdade, que não é somente externa porque nasce e vive dentro da mente e da sensibilidade dos homens.
Eu estive no Chile em 1970 e em 1973, no começo e antes do final do regime da Unidade Popular. Procurei, até por deformação profissional, observar o panorama da cultura, na minha segunda viagem pude verificar em plena rua, em cada banca de jornais e revistas, em cada comunidade dos arredores de Santiago, a mudança ocorrida nesses três anos. O projeto de edições populares da Editorial Quimantú começava a dar resultados mais que animadores, pelo preço de um maço de cigarros o povo do Chile tinha ao alcance da mão uma vasta série de coleções e de obras que eram acessíveis pela primeira vez aos setores mais populares do país. O que vi nas universidades, dialogando com estudantes e professores, me confirmou a certeza de que o governo de Salvador Allende e seus assessores no plano da educação e da cultura tinham visto o que em outro momento também viu de maneira exemplar o Governo Revolucionário Cubano, ao pretender não só a libertação externa e física do povo, mas uma outra libertação igualmente difícil de conseguir: a da mente, a da sensibilidade frente à beleza, a lenta e maravilhosa conquista de identidade pessoal, da autêntica capacidade de ser um indivíduo, sem o que não é possível defender e consolidar a libertação externa e a soberania popular.
Conheço perfeitamente os limites da educação e da cultura. Os verdugos cujas atrocidades comprovamos mais uma vez nesta sala também foram à escola e tiveram os mesmos professores e entraram nas mesmas salas de leitura das suas vítimas; seria hipócrita e sobretudo perigoso considerar o contrário e não sou eu quem vai se prestar a um jogo maniqueísta que me parece suicida. Mas três anos de Governo Popular no Chile não significavam uma mudança de geração, três anos de admirável luta educacional e cultural não bastavam e não bastaram para modificar comportamentos e condutas de muitos milhares de chilenos. Pessoalmente, estou convencido de que se a via socialista anunciada e buscada pelo Governo de Unidade Popular tivesse tido o tempo mínimo necessário para que seus planos culturais se traduzissem em resultados quantitativos maiores, certas formas de ressentimentos contra tudo o que é belo e puro seriam inconcebíveis. E sabendo que um Pinochet está definitivamente aquém de toda definição de cultura, também sei que seus planos e os dos seus cúmplices de fora e de dentro não contrariam com a obediência temerosa de muitos dos jovens soldados que atiraram contra seus irmãos por uma limitação mental, pela cegueira interna que faz dos homens ovelhas do medo. Exatamente frente a essa passividade e a essa ignorância que aceita todos os “planos zês” que os fazem engolir, sinto cada vez com mais clareza que a Junta entendeu perfeitamente que um dos obstáculos mais perigosos para o seu futuro residia nos resultados que o programa de conscientização política, estética e cultural da Unidade Popular havia alcançado em setores populares da população. Esses resultados ainda eram precários e insuficientes, mas a Junta não pareceu entender assim e se dedicou com a sanha que todos conhecemos ao seu desmantelamento e à sua liquidação. Esse medo profundo que todo fascista tem da educação, esse ato de puxar a pistola é em última instância o certificado irreversível do seu fracasso final. Matar um homem, exterminar um povo é fácil quando se têm as armas, os dólares, os cúmplices de dentro e de fora. O que nenhum sistema fascista pôde nem poderá é matar alguém por dentro e ao mesmo tempo deixá-lo vivo; está condenado a imperar sobre um imenso cemitério ou terminar como terminaram Hitler e Mussolini, como um dia não muito distante terminarão Pinochet, Banzer, Stroessner e toda a suja lista dos chacais da nossa história latino-americana”
Julio Cortázar. Denuncia y Testimonio. Terceira Sesión de la Comisión Internacional de Investigación de los Crimenes de la Junta Militar em Chile, Ciudad de México18-21 de febrero de 1975, Helsinki, Comissão Internacional de Investigação de Crimes da Junta Militar no Chile, 1975. In Papéis Inesperados, Civilização Brasileira, 2010.
Postado por Gabriel Kogan
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Belo achado esse testemunho. Já agradeço por trazê-lo `a luz em tempos de enorme pressão do presente e que aos poucos se esquece de rever o passado não tão passado e quem sentimos o tamanho desse buraco de difícil transposição no desenvolvimento cultural do país.
As demandas primárias seguem sendo saúde e educação, mas não se pergunta qual tipo de educação, que modelo educaciona e se os educadores estão preparados. E antes que se discuta isso, as classes se ascendem pelo consumo (será esse o marco contemporâneo para o esquecimento da cultura? Tecnologia e comunicação instantânea geram curiosidade e pensamento ou só retroalimentam o sistema da ignorância, em sua maior parte?).