São Paulo: Por um Novo Paradigma Urbano

10set12

“O simples fato de nos interrogarmos sobre a
possível eleição já vicia e perturba o elegível” JC

Quais são os temas fundamentais para construirmos as bases de novos comportamentos urbanos? Permanecemos reféns dos padrões que moldam a esfera política e que evita a transcendência da condição das cidade? Existe espaço para um novo paradigma urbano?

1- Carro não é sinônimo de qualidade de vida

O carro consome a qualidade de vida nas grandes cidades. Essa consciência, difundida pelas cidades Européias e em muitos lugares da Ásia e América do Norte, nunca encontrou no Brasil qualquer respaldo. Os carros são os grandes inimigos das cidades contemporâneas. Os projetos voltados para os automóveis desconstroem qualquer iniciativa por uma vida social justa nos centros urbanos e, não surpreendentemente, dominam as ações municiais. Por mais que isso pareça um senso comum para alguns, está longe de ser uma prática pessoal. Ter um carro, para a maioria que tem um carro, é uma opção. Ter um carro só não é uma opção para quem já não tem ou não pode ter um. Obra viária não deve ser objeto de nenhuma intervenção territorial. Simples assim: nenhuma. A vida do carro se tornaria mais e mais difícil, impossível. Não há dúvida que esse processo precisa ser acompanhado de uma violenta melhoria nas redes públicas de transporte. O carro dando lugar a meios coletivos e, sobretudo, aos pedestres parece algo fácil de ser falado e seria igualmente fácil de ser feito. No estilo davidbyrniano: em vez de pontes, calçadas para pedestres; em vez de túneis, linhas de veículos leves sobre trilhos. E como se ninguém percebesse, a vida do carro se tornará um inferno, ainda mais do que já é – até serem abandonados, assim no meio da rua.

2- O pedestre é prioritário sobre qualquer outro meio de transporte

Um genocídio, uma Guerra do Vietnã ou várias. Resignamos. Não é razoável velocidades máximas para veículos dentro do perímetro urbano maiores que 70 km/h. A velocidade de carros na cidade é 30 km/h, máximo 40 km/h. A classificação das vias é uma tarefa municipal. Um passo a frente deve ser dado também na articulação com outras esferas de governo. Avançar sobre pedestre, violar seu espaço físico, em qualquer situação, precisa ser tipificado criminalmente, como tentativa de homicídio. E o crime se estende para veículos subsequentes que emitirem sinais sonoros para automóveis que estejam respeitando o pedestre. O carro é uma arma. Todos sabem. Usar um carro para ameaçar um pedestre sobre a faixa (mesmo se o sinal estiver fechado para ele, diga-se), portanto, é um crime. Para quem matar: prisão. Se a lei começar a ser aplicada, os comportamentos serão alterados. Mais uma vez parece fácil – e é. As calçadas não podem ser uma responsabilidade privada, em que qualquer proprietário deixa seus buracos espalhados. Calçada é assunto público e fundamental. Ou seria razoável dizer que cada casa deve asfaltar seu pedaço de rua? Em vez de uma Companhia de Engenharia de Tráfego, a ser extinta, por que não uma Companhia de Transportes Urbanos? Uma empresa preocupada com a qualidade das calçadas e a travessia de pedestres.

3- O metrô é o único meio de transporte coletivo de alcance metropolitano

Infelizmente ainda não inventaram outro. O metrô articula toda a rede intermodal de transporte coletivo na metrópole. Linhas de Veículos Leves sobre Trilhos (VLT) são complementares. Para abrangência capilar e lugares de baixo fluxo, soma-se o ônibus. Corredores de ônibus são arremedos, extremamente poluentes e de baixa eficiência. Uma rede de transporte pública metropolitana será sempre intermodal, mas é o metrô o estruturador da rede. A companhia que opera o sistema é estadual, porém é incompreensível o impedimento das prefeituras em construírem a infraestrutura. Os dados sobre construção de metrô em São Paulo nos últimos vinte anos são estarrecedores: 2,4 km/ano. Algo tão baixo que, nesse ritmo, demoraríamos cinquenta anos para alcançarmos a Cidade do México, se esta resolvesse não construir mais nada. Paris, nas primeiras décadas do século XX construiu mais de 14 km/ano. A construção de linhas utilizando túneis profundos (“tatuzão”) só é utilizada quando não existe alternativa técnica construtiva. Metrô se faz com vala rasa e interrupção na circulação de vias, com grande economia de escala através de construção simultânea de várias linhas. Mais barato e rápido. O carro não é sagrado. Os impactos imediatos desse tipo de intervenção serão sempre recompensados no futuro próximo.

4- Bicicleta na cidade não é lazer de final de semana

Bicicleta na cidade é meio de transporte urbano. O sistema de transporte cicloviário precisa ser tão abrangente quando o sistema rodoviário. É isso que todas as cidades do mundo tem feito como alternativas para o sistema privado de automóveis. A topografia em São Paulo dificulta o uso de bicicletas como meio de transporte universal, mas isso se torna irrelevante se pensado numa dimensão intermodal, com integração entre bicicleta e metrô, por exemplo. Ou seja, não basta apenas construir ciclovias, mas também bolsões de estacionamentos para elas. O sistema de ciclovias, por sinal, não é em uma ou outra avenida, mas em todas as ruas da cidade. Sim. Em todas as ruas. Substituindo faixas de carros e estacionamentos laterais tipo zona-azul. Ciclovia com faixa exclusiva e separação física e não uso compartilhado com veículos, porque isso não funciona nem em Copenhagen e não funcionará em São Paulo. Apenas ruas com muito baixo fluxo não precisariam, em tese, de uma ciclovia exclusiva.

5- Plano Diretor não é um mecanismo de transformação da cidade

A ideia de que o plano diretor é a única (ou, ao menos, principal) forma de ordenação territorial é uma noção que só tem respaldo em alguns países da América Latina, sobretudo no Brasil. O estatuto das cidades, tanto festejado, tratou de oficializar esse dispositivo perverso e anacrônico, que tem como principal objetivo a manutenção do status quo. As cidades europeias e norte-americanas se valeram de uma abordagem similar por breves anos entre as décadas de 1960 e 1970, até a disciplina do urbanismo se dar conta do erro de setorizar a cidade e tratar intervenções através de textos de lei, simplesmente, ou manchas de cores em grandes mapas territoriais. Pior ainda, os planos diretores do Brasil instituíram um conceito bizarro (que reflete sua natureza conservadora): um limite máximo de adensamento. Enquanto as cidades discutem como criar condições para um limite mínimo de adensamento, corremos na direção oposta. Alta densidade é extremamente desejável para centros urbanos porque permite a otimização de infraestrutura, tanto na construção quanto operação de serviços. Não se viabiliza, por exemplo, a construção de metrô em baixa densidade de ocupação. Alta densidade garante também um tecido urbano vivo. A densidade populacional de São Paulo é muito baixa, o que explica o espraiamento quase infinito da periferia e pessoas morando cada vez mais distantes do lugar de trabalho. Os planos diretores no Brasil são invariavelmente um acordo conservador de forças políticas, que tem como objetivo implícito a manutenção das péssimas condições de vida nas cidades. A disciplina do planejamento urbano no Brasil nunca rompeu com o modus operandi, isto é, com as práticas desenvolvidas na ditadura militar para as cidades da década de 1970.

6- Os bairros jardins não são oásis urbanos

A questão do adensamento populacional em São Paulo enfrenta um grande desafio. Uma considerável parte de seu território dotada já de infraestrutura ou com condições imediatas de receber grandes investimentos é ocupada por bairros jardins que foram tombados pelo patrimônio histórico, executados em sua maioria pela Companhia City na primeira metade do século XX. Trata-se de uma vasta área, sobretudo nas regiões Oeste e Sudoeste da cidade, que tem uma ocupação urbana de baixa densidade. Ou seja, um solo importantíssimo urbanisticamente destinado para uma quantidade muito pequena de pessoas. O adensamento desses bairros é impossibilitado por leis de preservação histórica. Existe uma percepção errônea de que esses bairros seriam, na verdade, importantes pulmões verdes da cidade. Existem dois erros principais nessa ideia: (1) adensamento não estabelece uma relação inversa com áreas verdes, um adensamento bem feito, ao contrário, tem grandes áreas abertas para cidade; (2) as áreas verdes desses bairros atualmente se encontram, sobretudo, dentro de lotes privados, indisponíveis para uso público. Além disso, o solo do centro da cidade é muito precioso para uma ocupação desadensada de alto padrão, geralmente dispostas em cinturões periféricos nas cidades. Os bairros jardins estrangulam o adensamento de São Paulo e a possibilidade de uma cidade mais democrática.

7- Os rios urbanos não são problemas, mas soluções

Em vez de estruturadores da cidade, ou razão de sua existência, os rios são tidos como problemas urbanos. Esgotos a céu aberto ou passíveis de inundação. A transformação da relação dos cidadãos com o meio ambiente urbano começa pela transformação de seus rios. A ocupação das margens por grandes avenidas e o parcelamento das várzeas acabou por destruir a relação de São Paulo com as águas. Um modelo que desafie essa urbanização tem potencial de reorganizar toda a cidade. São Paulo, assim como qualquer outra, nasceu dos rios e deles depende. A Sabesp (empresa, em parte, estadual, por sinal) e o município não cumprem o papel de saneamento na cidade e deveriam, se não fosse uma manobra do Governo de São Paulo (que foi o único estado a não atualizar a Política Estadual de Recursos Hídricos a partir da nova Política Nacional), ser responsabilizados criminalmente pela poluição do Alto Tietê. Se o rio Tietê fosse enquadrado, como sugere a política nacional, a Sabesp teria de tratar nada menos do que 100% do esgoto. Calcula-se que esse número não passe de 32%. Portanto, a questão da poluição das águas do rio nunca mudará se o esgoto não for integralmente tratado. A água flui, o esgoto flui. E ele precisa fluir para algum lugar e esse lugar se chama, no fim, Tietê. E o que o município tem a ver com isso? Tudo. Porque é o município que dá a outorga para a Sabesp continuar sendo a empresa de saneamento básico responsável. A questão de drenagem, por sua vez, toca a urbanização de fundo de vale e várzeas (inclusive os próprios bairros jardins), além do transporte rodoviário que confinou os rios entre verdadeiras estradas urbanas. Parques fluviais desenhando as orlas, grandes áreas livres que absorvam as inundações, transporte hidroviário de carga, uma rede de parque que aumente a drenagem. Não são sonhos. Não devem ser, se a cidade não quiser viver constantemente embaixo d’água ou enxergar seus rios não como problemas, mas como soluções.

8- Habitação social não se faz com conjuntos de prédios na periferia

Uma cidade justa é projetada com populações pobres morando no centro da cidade e não na periferia. Habitação social não é sinônimo de propriedade privada em condomínio com prédinho de quatro andares, num terreno que fica a 2 horas do centro da cidade. Em Paris, o modelo de habitação do Estado garante que 20% de todas as unidades construídas em cada bairro sejam públicas. E são disponibilizadas para a população por um aluguel acessível para diferentes classes sociais. No centro da cidade. Sem propriedade privada, sem transferência de posse. Porque habitação é estratégia urbanística e não apenas distribuição enviesada de renda, em que o vencedor do sorteio revende a unidade depois. A gestão do edifício é feita também pelo Governo. Qual a diferença do edifício privado para o público? O público é melhor porque o Estado sabe que investimentos na construção significarão economias no futuro. Diversos arquitetos projetam os edifícios, garantindo uma grande diversidade de tipologias. Esse é um sistema que parece tão distante de São Paulo quanto Marte. Mas estão aí os elementos básicos para um novo modelo habitacional na cidade.

9- A escola pública é peça fundamental das intervenções urbanas

A escola pública é estruturadora de ações urbanísticas. A cidade é planejada, desenhada, em função desses equipamentos. Não se trata de mais um edifício, mas sim dos principais edifícios públicos de uma cidade. É fato que a escola do século XXI pouco se parece com a escola do passado. Espera-se que a escola pública transcenda esses desafios: não mais um lugar passivo de aprendizado, mas um espaço em que novas tecnologias, assim com a cultura e o esporte, contribuam para um aprendizado abrangente. O modelo das escolas-parques, que além de escolas são centros comunitários, tem potencialidades como centros estruturadores urbanos. Uma rede de escolas-parques espalhada pela cidade, que aumente o que já está parcialmente implantado, é uma ação importante, porém insuficiente. O problema não é apenas físico: o aprendizado passa pela interface professor-estudante. A qualidade de uma escola depende de um salário digno do professor, o que abriria portas para o predomínio de profissionais qualificados dentro da sala de aula, hoje sequestrados pelo mercado. O salário estimula ainda o atual bom profissional a permanecer no cargo e se aprimorar. Além disso, os professores precisam de condições para aperfeiçoamento. O processo de educação é contínuo, e os professores de escolas públicas precisam de mecanismos diretos para isso. Centros de formação e de educação de professores devem ter um alcance metropolitano, para toda a rede.

10- Todas as intervenções devem ser sistêmicas

Intervenções territoriais isoladas ou desconexas, inclusive projetos modelos, não são apenas irrelevantes como também prejudicais para as políticas públicas. Uma bela praça próxima da represa, um edifício de habitação social, uma linha de transporte, uma ou duas grandes escolas, uma ciclovia. Coisas bonitas mas insignificantes frente ao problema urbano. São Paulo não precisa de um parque, mas de uma rede de parques; não precisa de um edifício de habitação social, mas de algumas centenas de milhares; não precisa de uma linha de transporte, mas de um conjunto integrado intermodal delas; não precisa de uma ciclofaixa aos domingos, mas de uma em cada rua. As intervenções territoriais isoladas evitam as intervenções sistêmicas.

Pois ainda permanece a pergunta: tudo isso é muito caro?
E fica então uma bravata: é muito mais caro não ter tudo isso.
Gabriel Kogan, 10/09/2012

 

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One Response to “São Paulo: Por um Novo Paradigma Urbano”

  1. Gabriel, seu texto está sendo utilizado no Lourenço Castanho com a equipe de professores e com nossos alunos que desenvolvem um projeto discutindo a vida na cidade.
    Será importante como norteador da “conversa com candidatos a vereador” que ocorrerá no dia 21.09, sendo um dos elementos de preparação dos alunos.
    Obrigado!


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