A triste situação dos arquivos históricos de São Paulo

21fev13

arquivo

O texto a seguir não parecerá surpreendente os pesquisadores que, eventualmente, precisaram recorrer a fontes históricas primárias em seus trabalhos sobre São Paulo. Quem nunca ouviu dizer que as instituições não tem qualquer interesse em manter um acervo histórico em suas dependências? O custo é gigantesco e o retorno insignificante. Que uma empresa privada não queira ter esse ônus, isso é compreensível; agora o Poder Público? O Poder Público tem obrigação de zelar por seu arquivo, manter sua história. A história de São Paulo está se perdendo, se perdendo dentro de mapotecas de ferros e arquivos empoeirados. A situação dos acervos é alarmante. Muito mal conservados e em processo de total deterioração.

A Biblioteca Mario de Andrade, por exemplo, detém uma coleção inestimável de livros e documentos em suas dependências. Apesar de uma recente reforma, o acervo está em situação problemática. As consultas são feitas através de antigas fichas dispostas em arquivos de ferro. Isso mesmo, 2013 e praticamente nada do catálogo de pesquisa foi digitalizado. A consulta é rudimentar, visto que nem mesmo as fichas impressas estão unificadas. Existem diversas repartições e tudo está espalhado em um edifício labiríntico. Os funcionários muito competentes e sempre prestativos tentam desesperadamente localizar os itens. Mapas e documentos ficam em mapotecas inadequadas, aquelas gavetas com vários papéis justapostos, e não em mapotecas especiais para esse tipo de coisa. Aliás, o uso de mapotecas de gaveta é uma prática muito difundida pelos arquivos de São Paulo. Parte do acervo é inacessível, mas a sala de livros raros aberta ao público, ao menos é refrigerada. Isso não significa que as várias outras salas de documentos raros também sejam. Espero que sim. O tombamento nas velhas fichinhas é incompleto e deficiente e poucos trabalhos historiográficos são feitos dentro da instituição para identificar com precisão as peças. Apenas alguns poucos livros raros, manuscritos e fotografias foram recentemente digitalizados. Esse trabalho, no entanto, foi descontinuado.

A Mario de Andrade parece um arquivo luxuoso se comparado com o Arquivo Histórico de São Paulo. Esse é o mais importante depositário de documentos antigos da Prefeitura de São Paulo. Ficam, nesse edifício, documentos de grande valor histórico até 1924, relacionados com a cidade. O prédio está em processo de restauro, o que pode justificar alguns problemas. A questão, no entanto, é mais estrutural, de gestão. A falta de investimento é latente. Se na Mário de Andrade as fichinhas parecem muito toscas para a velocidade da pesquisa contemporânea, no Acervo Municipal não há catalogação. Existe, para ser justo, uma ou duas dezenas de fichários escolares que mostram o conteúdo de algumas pastas por tema. Esse catálogo não segue qualquer convecção internacional arquivista, e as tabelas mostram informações que alguém, em algum momento, julgou necessárias; sem nenhuma ciência. O prédio não tem condições ambientais para receber o acervo, o material não foi higienizado e a manipulação é feita por luvas de plástico de péssima qualidade, inadequadas para tocar documentos desse tipo. De qualquer forma, a falta de investimento em catalogação inviabiliza qualquer pesquisa. O que é um acervo deste sem catálogo? Para quê serve? A história da Prefeitura permanece inacessível e se apaga no antigo casarão próximo da Avenida Tiradentes. Ainda mais sério parece o fato de que a reforma no edifício começou sem um inventário intensivo do conteúdo do acervo, dando margem para roubos e perda de documentos durante o processo. Novamente, os funcionários são extremamente competentes, apesar de faltar especialistas em análise histórica. A única paleógrafa do arquivo se aposentou e ninguém é plenamente capaz de ler os manuscritos antigos.

Se já estamos ladeira a baixo, vamos descer um pouco mais. A Fundação de Energia e Saneamento. Uma OS (Ah! Essas OSs, a quê elas vieram?). Com a privatização de empresas de energia e saneamento no Estado de São Paulo, os acervos históricos não tinham para onde ir. Afinal as empresas não queriam aqueles trambolhos, caros, feios, antigos e sujos. Foi criada uma empresa para isso, que ‘herdou’ toda a documentação. Mesmo sem ter condições para isso, a Fundação de Energia e Saneamento foi criada para zelar pelo patrimônio histórico das antigas estatais. Os documentos, projetos, mapas e livros são apenas uma parte dos bens dessa instituição. Uma parte praticamente abandonada, aliás. A situação é crítica para o mais importante acervo de obras públicas de São Paulo. Por ali está (ou assim espera-se), por exemplo, o acervo da Light-Eletropaulo. Ou seja, os projetos das grandes obras de rios e transporte de São Paulo até a década de 1940. A Fundação está precariamente e provisoriamente locada em um agradável edifício industrial no Cambuci. Aliás (viu DPH?), esse complexo industrial, de grande valor arquitetônico, foi vendido pela AES e em breve a Fundação será despejada, sem lugar definido (e o provérbio alemão é sábio: duas mudanças equivalem a um incêndio). O atual edifício é bonito, mas totalmente inadequado para receber o acervo. O entorno inunda, o prédio tem goteira sobre os documentos e livros e o pior: a catalogação de projetos, documentos e fotos foi desfeita de alguns anos para cá. Sim… A Fundação herdou o arquivo parcialmente organizado das empresas. A Eletropaulo, por exemplo, tinha tudo bem catalogado, em planilhas e fichas. Mas essas catalogações não obedeciam às convenções internacionais, o que tornava muito difícil unificá-las.  O que a instituição fez? Desfez a organização, mas, ao em vez de reorganizar a medida que modificava a antiga ordem, acabou a indexação sem fazer outra. O que temos hoje? Um monte de mapotecas e tubos jogados, onde ninguém (ninguém!) sabe o quê tem dentro e nem onde está. São arquivos e mais arquivos de onde brotam peças importantíssimas da história de São Paulo. Tudo está jogado nesses lugares, imundo, apodrecendo; documentos rasgando. Com sorte não existem bactérias da gripe espanhola por lá. A única qualidade é que a sala de armazenamento tem ar condicionado, mas espero que eles (que ironia) não desliguem de noite para economizar. É evidente que a fundação não tem capacidade (seja lá técnica ou financeira ou política) de guardar esse acervo. Tudo piorou nos últimos anos.

Para não dizer que não há nada de bom nos acervos históricos, o Estado fez algo muito bem feito. Construiu uma nova sede, bem equipada, para receber os documentos. Unificando tudo. A visita a essa acervo não é propriamente agradável, como vi em alguns arquivos na França, em que o edifício do arquivo histórico é uma atração cultural da cidade; mas a consulta e armazenamento são mais do que adequadas. O prédio é como uma grande caixa forte de documentos, sem janelas, o que faz da experiência algo um pouco mórbido, enquanto pessoas consultam fichas criminais da Polícia Militar ao seu lado. De qualquer forma, merece respeito a iniciativa do Governo: fazer um lugar adequado para receber sua história e seus documentos. Além disso, a burocracia do lugar é bem reduzida se comparado aos outros acervos da cidade. É permitido bater fotos, por exemplo, das coisas que estão sendo consultadas.

Por fim, um último assunto. O uso de documentos históricos de acervos, mesmo para finalidades acadêmicas, está quase sempre sujeita a cobrança de taxas pelas instituições, mesmo as públicas. Qual é o sentido disso? Cobrar pelos documentos públicos históricos? A quem isso interessa? Essa norma favorece apenas a burocracia e atrapalha a pesquisa. Uma pesquisa histórica pode custar milhares de reais só em direitos de imagens pagos para os cofres públicos. Acredito, no entanto, que na escala do município, por exemplo, a arrecadação total dessas taxas é insignificante. Aliás, há um decreto municipal, expedido dia 21 de Dezembro de 2012 (http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/decreto_53657_1359457802.pdf) pela antiga gestão, requerendo essa cobrança de todos os usuários. Já se passaram três meses da nova gestão e esse decreto não foi revogado para as instituições culturais da Prefeitura. Considero que seria de grande importância revê-lo. E se o incentivo a pesquisa não é um argumento forte o suficiente, questiono a constitucionalidade desse decreto: a lei federal de acesso a Informação (LEI Nº 12.527, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011) prevê que (Art. 12) “o serviço de busca e fornecimento da informação é gratuito, salvo nas hipóteses de reprodução de documentos pelo órgão ou entidade pública consultada, situação em que poderá ser cobrado exclusivamente o valor necessário ao ressarcimento do custo dos serviços e dos materiais utilizados.”. Ou seja, cobrar pelo xerox é legal, mas não pelo direito de imagem do documento. Como se não bastasse o estado trágico dos acervos municipais, o decreto piora ainda mais a condição de pesquisa nos acervos históricos. A situação é lamentável.

Post escrito e enviado por Gabriel Kogan

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