Transporte público: direito do cidadão; dever do Estado?
O reajuste nas passagens de ônibus e metrô em São Paulo é apenas um sintoma dos problemas de transporte público na cidade (e os movimentos organizados parecem ter plena ciência disso). Precisamos voltar para 1995 para compreender a situação. Paulo Maluf era prefeito da cidade e Mario Covas assumia o governo do Estado. Desde esse momento há uma continuidade nas políticas de transporte, independentemente da gestão, e mora ai a origem de algumas das questões debatidas hoje.
O sistema público de transporte na metrópole de São Paulo se estrutura basicamente em duas modalidades: o ônibus, de responsabilidade municipal; e o metrô, de responsabilidade estadual. Como uma cidade de mais de 20 milhões de habitantes, o sistema estruturador deve ter altíssima capacidade e baixo impacto ambiental. O metrô deve assim, fazer o sistema estrutural, enquanto o ônibus tem importância complementar, fundamental para capilaridade e distância curtas. Deveria ser assim, mas a verdade é que em São Paulo nunca foi.
Voltemos então para 1995. O ônibus era operado e gerenciado por uma empresa publica. Sim! Pública, mas Paulo Maluf nos deixou mais um legado praticamente irreparável. A CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos) carregava em seus ônibus a frase “Transporte público: direito do cidadão; dever do Estado”. Como parte fundamental do planejamento urbano de uma cidade, o Estado precisa ter controle sobre as questões de mobilidade urbana, é básico para políticas públicas urbanas. Eis então que Maluf fez aquilo que parecia impossível e privatizou a operação dos ônibus na cidade de São Paulo, acabou com o direito do cidadão e com o dever do Estado. Fez isso, ainda por cima, da pior forma possível, criando uma verdadeira máfia de transportes controlada por, entre outros, os novos felizes proprietários das viações urbanas. O que já era ruim ficou pior, praticamente irreparável. Surgia então a SPTrans, uma mera gestora do sistema, com restritas possibilidades políticas e jurídicas, à deriva de vontades privadas de grandes empresas.
Em 2004, a Prefeitura tentou iniciar a implantação de um projeto desenvolvido por técnicos da secretaria de transporte chamado Interligado. Tratava-se de um planejamento de operação da rede de ônibus na cidade, que propunha a construção de infraestrutura como corredores e a implantação de um bilhete eletrônico que facilitaria a integração de diversas linhas. Parte desse projeto foi implantado e a maior herança dele foi o chamado Bilhete Único. No entanto, a implementação do Interligado foi abortada pouco tempo depois e uma pequena parte do projeto foi colocado em prática. O sistema de concessão de operação de linhas de ônibus para empresas privadas não foi modificado. Muito pelo contrário, isso se manteve de maneira forte na reelaboração das leis vigentes.
Um conjunto de leis hoje atua sobre a regulamentação pública sobre o sistema de ônibus em São Paulo. Entre os dispositivos legais destacam-se a lei nº 13.241/2001 e os decretos nº 42.736/2002 e 47.139/2006. Entre outras coisas, esses textos instituíram um confuso sistema de concessões e permissões para empresas operadoras, que são contratadas através de licitações “públicas”. Além de receberem o valor das tarifas, esse sistema bizarro estabelece que essas empresas devem receber uma remuneração da prefeitura pela operação do sistema. Trata-se de uma espécie de “compensação” financeira de altíssimo porte pelo sistema supostamente deficitário. O valor dessa remuneração em Janeiro de 2011 girou em torno dos módicos R$349,5 milhões segundo o que era divulgado pelo próprio site da SPTrans na época e que foi retirado do ar mais tarde*. Provavelmente esse valor é muito mais alto hoje.
A questão que se coloca sobre esse valor é: como ele é estabelecido? A legislação (vejam vocês) não é clara sobre isso. Se as empresas operadoras dos ônibus dão lucro (e devem dar porque elas não parecem dispostas a sair de cena) o lucro é financiado ou fortalecido pelo aporte compensatório oferecido pela Prefeitura. Quais são os critérios para estabelecer esse valor, que se torna totalmente arbitrário sem uma justificativa jurídica ou econômica? É um subsídio para o lucro das empresas? Sem essas respostas o próprio reajuste é arbitrário, assim como o valor que está sendo cobrado.
Esse problemático sistema de concessões de linhas, que parece um caminho sem volta, foi revertido em cidades colombianas, por exemplo, que conseguiram mudar o domínio privado com um método muito simples: as empresas prejudicadas pela remunicipalização do transporte público (por causa de contratos em vigor etc) foram remuneradas com ações da nova empresa, majoritariamente, de propriedade do Estado. Obviamente não é uma mudança perfeita, mas é simples, positiva e bastante viável. Apenas com uma nova empresa municipal, as linhas de ônibus poderiam ser projetadas como parte de um sistema completo de mobilidade urbana e, a cima de tudo, serem consideradas um direito do cidadão, e não uma máquina de lucros em que a operação durante a madrugada se torna inviável, por exemplo, apenas porque seria deficitária.
Vamos de novo para 1995. Agora na esfera Estadual, para aquela que deveria ser a rede estruturadora de alta capacidade. Havia grande expetativa que o novo Governo revertesse o quadro anterior, em que Fleury (aquele mesmo dos 111 presos mortos) não havia construído nada de metrô. Nenhum quilômetro. Supostamente, a construção do metrô é algo lento e assim teríamos que ter paciência. Já se passaram 18 anos; acho que já é tempo suficiente para analisarmos as políticas implantadas.
Os números de novas linhas de metrô construídas nesse período são ridiculamente baixos: São Paulo aumentou sua rede em 1,9km/ano. Cidades similares, como Santiago do Chile, cresceram 4,2km/ano no mesmo período. E para quem acredita que construir metrô é algo realmente lento, entre 1900 e 1914, Paris construiu mais de 90 km de linhas subterrâneas, numa média de quase 6,5km/ano. Isso demonstra quão baixos são os índices da cidade de São Paulo. Há então uma grande decepção na velocidade que o Governo Estadual expande a rede. Números absolutamente inaceitáveis. Enquanto a Cidade do México, por exemplo, tem uma rede de 201km e 195 estações, São Paulo conta apenas com 74km e 64 estações. Os dois metrôs começaram a construção exatamente no mesmo ano… A expectativa por um governo que finalmente investisse no metrô foi substituída por uma grande decepção.
O que implodiu em São Paulo, a partir das questões de transporte público, não restringe a uma simples questão sobre o reajuste a cima da inflação (o valor, considerando dados oficiais dos últimos 20 anos não deveria passar de R$2,00), mas sim uma insatisfação total com as questões urbanas, com a péssima qualidade de vida na cidade. São Paulo experienciou um fenômeno que seria curioso se não fosse triste: crescimento econômico com rápida deterioração da qualidade urbana. É natural que transporte público, como um elemento sensível do dia-a-dia e como símbolo do caos que vivemos, seja um mote primeiro. Agora, como já ficou evidente, não estamos mais falando sobre isso. Estamos falando de muito mais: violência policial, criminalidade, liberdades civis, corrupção, gastos públicos. Enfim, estamos falando da desgraça que todos sentimos, alguns bem mais que outros: a desgraça de viver em São Paulo, a cidade que, como diria Tom Zé, apesar de tudo isso, carregamos no nosso peito.
Comecemos pelo transporte, e levemos isso até as últimas consequências.
Gabriel Kogan, 16/06/2013
* O site ativo ainda em 2011 foi provavelmente elaborado no final da gestão de 2001-2005. Não encontrei os atuais valores de subsídios, mas é possível que ultrapassem R$1 bilhão/ano. Alguns números divulgados agora em 2013 falam em um subsídio de R$1,4 bilhões.
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Muito bom e esclarecedor o seu texto, Gabriel. Desconhecia 90% da história sobre o modelo de concessão dos ônibus aqui em São Paulo. Espero que não se importe; publiquei um link desse seu texto na página do Movimento Passe Livre no Facebook. Abs.
Obrigado! A história recente do transporte público em São Paulo ainda é uma caixa preta, que precisa ser aberta. Pode sim divulgar! Abraços.