Sobre Arte, com Raiva (I): Histórias Mestiças

23set14

Albert

Na mostra “Histórias Mestiças”, no Tomie Ohtake, os curadores – Adriano Pedrosa e Lilia Schwarcz – reproduzem a história de dominação eurocêntrica na América, valendo-se de subterfúgios fetichistas que vão de Tarsila do Amaral até Viveiros de Castro, passando por Albert Eckhout. Não fogem do senso comum, ao contrário do que tentam afirmar no texto curatorial.

A história da dominação dos povos é retratada como pacífica dominação incontestável e facilmente transformável em fetiche do mercado – objetivo último em tempos sombrios de arte subjugada a curadoria. Nas obras expostas não há sangue, como a história dos povos na América pudesse se remeter ao concílio e não à guerra; como pudesse ser bela e não medonha.

Ergo: Estamos falando de uma história de genocídio, de uma barbárie de 5 milhões de índios e 4 milhões de negros brutalmente escravizados. A mostra esconde isso para debaixo do pano, e o que não consegue, trata de expor como elemento estético no estilo novecentista: união dos povos ou iconografia acrítica. A aproximação entre os trabalhos é meramente formal, com temas fáceis, saídos da derradeira versão da Enciclopédia Barsa.

Podemos traçar uma analogia com a Bélgica (e sua culpa incurável em forma de nação contemporânea). Na exposição, aquilo que não pode ser suavizado na história da violência assassina do Congo Belga, adentra ao campo das apaziguações superficiais, dissimuladas, barbáricas e capitalistas da gigante dos diamantes De Beers. “Histórias Mestiças” é mais do que colonialista; é, infelizmente, neocolonial.

Como não poderia ser diferente, a curadoria de obras contemporâneas é também ideológica: mais do mesmo, oras; sem criatividade e com pesquisa fácil. O envelhecido artista Ernesto Neto, que há 20 anos mostra o mesmo trabalho em diferentes montagens, agora resolveu descontextualizar o uso xamânico do ayahuasca dentro de um espaço expositivo. Toda a insuficiência do trabalho, e sua fina ironia malandra, foi bem representada em texto publicado na Folha –http://religiosamente.blogfolha.uol.com.br/2014/08/20/sob-o-dominio-do-ayahuasca/.

Assumir as “Histórias mestiças” como uma “Mestiçagem de histórias” é compactuar com a falência (pós-moderna) das artes, com a falência da curadoria nas instituições contemporâneas; a própria falência da poesis e da crítica em nossa sociedade. Acredito ainda numa história crítica, mesmo que insistimos em nos escondermos (ou nossos textos curatoriais fazem isso) na retórica politicamente correta de seres abertos e sem preconceitos enquanto nossos atos são incontestes: uma nação racista que espera, impassível, o fim dos tempos após o grande massacre que tenta desesperadamente esconder. Não há o que dissimular ou velar; trata-se de um conflito; e nós já perdemos, vendidos pela retórica barata: a mercadoria, aqui, da arte – que ainda há de aplaudir essa mostra. Um horror ou alguém dá mais?

Gabriel Kogan, 23.09.2014

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One Response to “Sobre Arte, com Raiva (I): Histórias Mestiças”

  1. 1 thay

    Muito bom seus comentários e textos lúcidos! Encontrei o blog por um seridipite e estou adorando.


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