Sobre Arte, com Raiva (III): “Não tocar, por favor” ou uma das mil formas de matar a arte

05out14

mira

A exposição de Mira Schendel na Pinacoteca não faz jus à obra da suíço-brasileira. A arte é intocável, é como um santo em um altar, uma rainha cercada por seus guarda-costas. Ai de quem resolva perfurar barreiras. Alarmes soarão e tiros serão disparados.

“Não pode soprar”, foi o que ouvi do segurança, ao respirar próximo da obra ‘Ondas Paradas de Probabilidade’, feita simplesmente de fios de nylon suspensos no forro. Isso é lamentável e Mira deve se revirar no caixão. Os curadores pesquisaram o pensamento da artista e a intenção desse projeto?

Vejam o que a artista fala sobre a primeira exibição dessa mesma obra na Bienal em 1969: “O modelo será montado no próprio local. No tocante ao dinheiro, custará menos de 10 francos suíços. E também não me importo se o destruírem. Depende da possibilidade de ver-se nele algo ou nada se perceber. De modo que se alguém deixar intactos esses finos fios de náilon, cortá-los com raiva ou arrancá-los, no fundo (plano de fundo!), isso não teria a menor importância.”

Agora a instalação virou simples imagem contemplativa. Todo o conteúdo político, sensorial e libertário foi substituído por um objeto estético inerte. Vamos dizer que isso não é grande novidade. Quantas vezes já vimos obras de Lygia Clark ou Helio Oiticica, por exemplo, também pensadas para originalmente como sensoriais e interativas, acompanhadas de plaquinhas como palavras de ordem: “Não toque, não pise, não pense”.

Na mesma mostra atual de Mira na Pinacoteca, a sala mais impressionante tem quadros meticulosamente trabalhados, feitos em finos papeis e montados entre duas chapas transparentes. Os trabalhos ficam flutuando no espaço, mas – inexplicavelmente – não se pode caminhar entre eles. Por que?

“Foi uma decisão da curadoria mesmo, em Londres podia andar no meio, mas não podia tirar foto”, explicou com naturalidade o monitor do espaço. Seria bom se os museus se preocupassem um pouco com outras coisas senão montar esquemas de segurança intransponíveis para obras de arte. “Não toque!”, tem muito valor, é sagrado, é inatingível. É fetiche. É arte.

Gabriel Kogan, 04/10/2014

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3 Responses to “Sobre Arte, com Raiva (III): “Não tocar, por favor” ou uma das mil formas de matar a arte”

  1. 1 Taisa Palhares

    Gabriel, como co-curadora da exposição só posso lamentar que você não compreendeu nada do universo poético de Mira Schendel, para quem a participação nunca foi uma questão importante. Ao contrário, seu trabalho visa exatamente a contemplação e o silêncio como experiência estética. Você está confundido Mira com Lygia Clark…E só para constar, em Londres não se podia tampouco andar entre os Objetos Gráficos. Sua informação é errada.

    • 2 gabriel kogan

      “Participação” não me parece mesmo ser exatamente a expressão para descrever esse trabalho de Mira, ou qualquer outro. Havia lá sim um conteúdo político forte, um desprendimento material, abstraído hoje, e um senso de liberdade. Realmente não consigo entender a existência de uma vigilância (quase policial), opressiva, dentro de um espaço expositivo, em especial nessa obra que pode ser infinitamente reproduzida, com material quase descartável e barato. Para reforçar, repito as palavras da artista: “De modo que se alguém deixar intactos esses finos fios de náilon, cortá-los com raiva ou arrancá-lo (…) isso não teria a menor importância”. “Contemplação” e “silêncio” não são experiências contraditórias ao possível percurso por dentro dos fios. E sobre Londres, não tive a oportunidade de ver a mostra na Tate; a informação foi passada por monitores do espaço na Pinacoteca. Portanto, acredito que há algum problema de treinamento dentro do museu. Mas (já como comecei essa crítica, vou até o fim), acho que a montagem dessa sala decepcionante porque – além de impor mais constrangimentos (“não pode andar no meio”) – ela impossibilita a visualização da transparência (ou do duplo lado) dos papéis. Alguns deles podem apenas serem vistos de muito longe, e outros de muito perto, quase sempre de forma oblíqua. Essa relação do detalhe e do todo me parece ser algo fundamental nessa série. A imagem da flutuação das peças da montagem predominou sobre as próprias obras.

    • 3 gabriel kogan

      Só uma outra coisa. Para uma curadora da exposição, afirmar que alguém não “compreendeu nada do universo poético de Mira Schendel” me parece algo forte demais, não? Sinto que está sendo colocado aqui uma leitura bastante estrita da obra dela.


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