A crise hídrica como a falência do pacto federativo

19out14

A situação da crise hídrica em São Paulo é seríssima, não apenas porque ameaça todas as bases econômicas da cidade, mas porque mostra a falência do pacto federativo no Brasil.

A complexidade legal/institucional no setor das águas é surreal: a agência reguladora é federal; os conselhos e a gestão das águas são estaduais; as outorgas são municipais. Não entendeu? Nem eu, que estudo isso há mais de 10 anos.

Na prática, nenhuma instância tem poder efetivo sobre as demais, apenas por meio de pressão política. Além disso, tudo é feito para conspirar contra. A política nacional (Lei Nº 9.433), por exemplo, é de 1997; a lei estadual de SP (Lei nº 9.034 é de) é de 1994. Mas pode isso, Arnaldo? Uma lei estadual mais antiga que a nacional?

Em 2008-10 o Estado fez um Plano para a Bacia do Alto Tietê (onde, infelizmente, estamos). O plano “enquadrou” (classificou) os rios (http://goo.gl/8YwfV2). O Rio Tietê foi considerado, em algumas partes, de classe 3 – que devem apresentar condições de “não verificação de efeito tóxico agudo a organismos” ou “substâncias que comuniquem gosto ou odor” e que sirva para “abastecimento para consumo humano”, “à irrigação de culturas arbóreas, cerealíferas e forrageiras” e “à pesca amadora” (http://goo.gl/bB0WjC). Yupiii! À pesca amadora, à pesca amadora, à pesca amadora, à pesca amadora…

Isso parece um delírio distante? Sim, se considerarmos a onipresença da SABESP e seu fiel escudeiro, o Governo do Estado. Mas, péra, por que o Rio Tietê é poluído? Simples: porque o esgoto na cidade não é tratado. A partir do momento que o rio é “enquadrado”, são estabelecidas obrigações para esse tratamento, para a SABESP e governo.

O que nosso querido governador (aprovado por 57,3% da população) fez para evitar enormes gastos em coisas inúteis como saneamento ou meio ambiente e garantir os importantes lucros dos acionistas da SABESP na Bolsa de Nova Iorque? Não submeteu o plano (pago com dinheiro público) para o Conselho de águas do Estado. Ou seja, para efeito geral, é como se o plano e o enquadramento dos rios não existissem. Vejam se vocês acham alguma ata disso das reuniões do conselho: http://goo.gl/GUXV7l.

E então qual medida a ANA (Agência Naciona de Águas) pode tomar? Nenhuma. E os municípios? Na prática, nenhuma. E fica tudo como está. Uma falência total e absoluta dos modelos estabelecidos pelo pacto federativo da constituição de 89 e um caos de abastecimento e saneamento na cidade. Legal, né?

Assim, não existe obrigação da SABESP em tratar todo o esgoto da cidade (como acontece em qualquer metrópole descente, e sem essa de falar em subdesenvolvimento porque a SABESP se gaba de ser a maior empresa de saneamento do mundo, com lucro projetado, nesse ano infeliz de 2014, em R$1,8 bilhão).

Agora, vocês acham que isso não tem nada a ver com crise hídrica? Recomendo a leitura de um paper sobre a transformação no sistema de águas em Singapura (http://goo.gl/CvTYEC). Fecharam o sistema por lá: 100% do esgoto é tratado e reinserido na tubulação para ser consumido. A cidade-estado que não conta com rios, não precisa assim importar água de outros países. A dessalinização complementa o sistema. E estamos falando de uma rede grande, para 5 milhões de pessoas, hein? Não me surpreenderia que todo essa tecnologia custe menos que um ano de lucro da SABESP. Não mesmo…

Gabriel Kogan, 19/10/2014

Original em https://www.facebook.com/gabriel.kogan2/posts/10152888195847784

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One Response to “A crise hídrica como a falência do pacto federativo”

  1. 1 Antonio Castro

    Seus artigos s~]ao espetaculares e muito esclarecedores da questão. Quem sabe, sabe… Há muitos anos que a Sabesp vem abusando de sua situação de monopólio. Eu moro em Atibaia, cidade que não se submeteu ao polvo tucano, mas que também sofre com ele. Sofre muito.
    Faz alguns anos que uma grande inundação encheu bairros e casas na cidade: a Sabesp abriu a represa de Nazaré Paulista, que um minimo de planejamento mostraria que não aguentaria as chuvas: existe previsão de tempo para isso.
    Eu desconfio que a própria Sabesp “bombardeou” as nuvens para aumentar as chuvas e a população de Atibaia pagou por isso, sem que a Prefeitura (nas mãos do aliado PV) tentasse recuperar os prejuízos causados pela empresa.
    Pela sua informação da interligação dos reservatórios parece que a população vai sofrer novamente!!
    Parabéns e obrigado por colocar seu conhecimento disponível.
    Um abraço
    Antonio Castro


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