O projeto inacabado de Lina Bo Bardi
Lina Bo Bardi tem hoje, dia 5 de Dezembro de 2014, celebrado seu centenário, mas seu pensamento ainda parece pouco assimilado – inclusive (e sobretudo) por arquitetos –, apesar de o mundo ver hoje uma verdadeira onda de Linamania: exposições, livros, palestras e novos edifícios inspirados na obra da arquiteta ítalo-brasileira; de São Paulo a Munique, de Roma a Buenos Aires.
A tônica das atuais revisões é formal, superficial, e em pouco incorpora sua vivacidade criativa e dimensão política. Aliás, essa própria compreensão formal parece limitada. Lina conseguia criar um desenho, ao mesmo tempo, pesado e elegante, com um forte senso de massa. Os arquitetos contemporâneos são incapazes de sequer emular isso e, quando se propõe a algo similar, o resultado é impreciso, sem o peso e sem a elegância. As exceções são raríssimas.
A leitura internacional da obra de Lina vem impregnada por uma névoa de fetiche sobre algo exótico: uma mulher, a partir dos anos 50, no Brasil. Análises respeitosas precisam se despir desses elementos, porque eles são absolutamente irrelevantes, principalmente quando estamos falando de uma obra tão poderosa. A arquitetura de Lina não é boa porque ela é um homem ou uma mulher, se foi feita agora ou há 50 anos, se é brasileira ou não. Nem é boa por causa de uma hipotética discussão, de fato irrelevante, entre modernismo e pós-modernismo. A força dessa arquitetura está acima dessas palavras-chave de fetichismo universal.
Aqui no Brasil, a leitura dominante da obra de Lina soa ainda menos convincente. Tratam com desdenho a essência política da noção de, como ela mesma definia, “arquitetura feia”: livrar-se de um determinismo espacial estabelecido pela arquitetura, para transferir a construção do espaço para a livre organização política dos Homens.
Sua obra se edifica a partir da radical simplicidade e clareza, tanto de pensamento quanto programática. As instalações de infraestrutura – como hidráulica, elétrica, etc – são simples como podem ser, quase sempre expostas ao olhar de qualquer pessoa, e sem nenhuma parafernália ou milhares de pranchas de projeto. Não existe espaço para o politicamente correto de acessibilidade universal ou sustentabilidade. Da arquitetura fica apenas o essencial, para o corpo e para o espírito, mesmo que isso inclua elementos com estrita função simbólica.
Não por acaso, o aspecto mais negligenciado da arquitetura de Lina, no entanto, é a forte conexão com o canteiro de obras. Sobretudo, a partir do projeto do Sesc Pompéia, Lina começa a fazer uma arquitetura coletiva, em que as soluções eram discutidas, criadas e definidas em conversas na construção, com pedreiros e mestres de obras. Isso possibilitou que, por causa da simplicidade e racionalidade construtiva, suas obras dessem sempre um passo à frente em termos tecnológicos. É um projeto político, um projeto revolucionário: a arquitetura se faz não apenas como produto, mas também como processo. Aliás, os próprios elementos da cultura popular, agora fetichizados até a aniquilação, precisariam entrar dentro dessa mesma dimensão processual.
Além disso, o princípio de intervenção no espaço construído, utilizando as potencialidades históricas existentes, foi outro princípio severamente ignorado na arquitetura brasileira dos últimos 30 anos. Em oposição aqui temos uma exacerbação do desenho e da monumentalidade da arquitetura (ou ao menos o desejo disso).
Estamos diante, em Lina, de um projeto arquitetônico e político amplo, no qual as atividades contemporâneas localizadas e ultrafocadas – como “acupunturas urbanas”, “arquitetura sustentável” ou “arquiativismo” – não tem e nem podem almejar ter qualquer relação. São projetos antagônicos em essência, sobretudo se olharmos para a abrangência e potência da obra de Lina, que se ergue quase como ‘uma teoria’.
A maior prova de que a arquitetura dela não foi ainda bem compreendida socialmente é o péssimo estado de conservação dos edifícios de Lina Bo Bardi no Brasil, como se isso não fosse, em absoluto, relevante para a arquitetura: seus projetos urbanos na Bahia parecem ruínas, o MASP teve seu espaço totalmente desfigurado e o Teatro Oficina é encurralado por novos e gigantescos edifícios. De fato, praticamente todas as suas obras enfrentam graves problemas. Lina, cem anos; talvez demoraremos mais cem para respeitar e compreender sua arquitetura.
Gabriel Kogan, 05/12/2014
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