Ensaio para uma história social dos rios de São Paulo

19jan15

A atual crise hídrica pode ser uma oportunidade para revermos as bases urbanísticas de São Paulo. Proponho um exercício: um passo atrás; dois à frente. Bailemos olhando a história para projetarmos o futuro. E isso demanda algo como uma “História social dos rios de São Paulo”, assunto que intersecciona meu mestrado (https://cosmopista.files.wordpress.com/2014/11/thesis_gabrielkogan.pdf). Fica aqui um breve recorte temporal e conceitual em 4 atos: São Paulo dos Campos de Piratininga (1) – Os portugueses viram no sítio as mesmas virtudes que os indígenas conheciam: vistas de morros para segurança, abundância de recursos hídricos e entroncamento estratégico de caminhos. Estavam por lá o Rio Tietê (o Rio Volumoso), o Jurubatuba (nosso Rio Pinheiros ou o Rio das Palmeiras) e o Tamanduateí (Rio do Tamanduá Bandeira). Para obter água não era preciso ir longe, as infinitas nascentes da região provinham água fácil e relativamente segura. Havia, no entanto, um problema: esses grandes três rios da região eram meândricos, corriam em um terreno quase plano das várzeas, as águas não tinham um leito fixo. De tempos em tempos vinha uma enchente sazonal, mudava as curvas do rio e trazia peixes para secarem nas margens. Daí veio o primeiro nome da cidade, “Peixe Seco” ou “Piratininga” em Tupi Guarani. À medida que a cidade colonial crescia, durante o século 19, a área das várzeas, com as suas águas estanques, ficavam menos salubres já que o esgoto ia, invariavelmente, parar lá. Corta. São Paulo Sinfonia da Metrópole (2) – Estamos em 1929 e o prefeito da cidade, Pires do Rio, tem em seu gabinete 3 projetos para os rios urbanos: o “Projeto Serra” tocado pela empresa canadense ‘Light’ que estava a todo vapor transformando os cursos d’água em lucros de geração elétrica; o projeto de Saturnino de Brito que pensava o uso integrado das águas e projetava lagos e parques; e o projeto de dois engenheiros Ulhôa Cintra e Prestes Maia que pensava os rios como simples vetores de transporte privado e rodoviário. Desde 1888, a cidade vivia um boom demográfico, impulsionada pela industrialização. A população de 60.000 pessoas atinge seu primeiro milhão no final da década de 1920. As pessoas pobres são empurradas para as baratas e perigosas várzeas, sujeitas a grandes inundações. A relação com os rios é conflituosa, tanto pelos desastres sazonais quanto pelas águas cada vez mais fétidas do Tietê e seus tributários. Para o poder público a transformação das águas havia de ser um projeto ideológico: secar as várzeas, valorizar os terrenos, arrancar as pessoas pobres e jogar para periferia, vender para empresas como a Cia City a preço de banana e construir bairros jardins, fazer canais artificiais e represas para gerar energia para as indústrias, construir grandes avenidas marginais junto as áreas planas dos rios para promover o carro. Ou, em outras palavras, valorização fundiária, geração de energia e promoção do transporte individual. Os rios passavam a ser vistos como algo ruim, mas muito útil. Corta. São Paulo Meu Amor (3) – As águas urbanas são males a serem extirpados. As enchentes castigam a cidade e uma CPI chefiada por Figueiredo Ferraz é montada na Câmara dos Vereadores em 1963. Vem o golpe e com ele a onipresença de Maluf, para substituir Prestes Maia. Os projetos de 29 foram parcialmente feitos; o que interessava os lucros dos donos do poder foi construído, o que era perfumaria para a qualidade de vida dos habitantes, descartado. O pensamento dominante é o de que os rios são horrorosos, que precisam ser canalizados, tamponados, darem lugar a mais ruas ou irem para um piscinão à 7 palmos abaixo da terra. Vamos matar os rios! (se é que eles já não estão mortos). E quem não concorde com isso que vá para outro lugar. São Paulo, ame-a ou deixa-a. Em que ano estamos? Estou um pouco confuso… 1964 ou 2014? É nesse ambiente de esquizofrenia surreal que tucanos projetam e executam uma reforma da calha do Tietê em puro concreto, que aumentam as marginais em vez de desabilitá-las, que privatizam as empresas que cuidavam dos rios, que sucateiam a empresa de saneamento e abastecimento para depois vendê-las. Os rios se tornam escravos dos carros. A cidade convive com a iminência paradoxal de enchentes devastadoras e secas terríveis. Há um desequilíbrio total na gestão das águas, essas inimigas. Vivemos em crise. Corta. São Paulo Cidade do Futuro (4) – Reinserir as águas na vida cotidiana dos cidadãos é enfrentar a própria história de construção da cidade. Após mais de um século e meio de intensas transformações dos rios (o canal do Tamanduateí foi completado em 1914 e suas primeiras obras são de 1851), São Paulo encontra uma encruzilhada. Para onde ir? Continuar o projeto dominante de tratar as águas pragmaticamente através da engenharia ou tratar os rios como parques, lugares de encontro e imprescindíveis para a cidade. Tudo deve começar com o saneamento. Bastaria aplicar a lei e forçar a empresa encarregada a tratar todo o esgoto. Precisamos ir além, tomar nosso esgoto e fechar o sistema: toda água de abastecimento é tratada e reinserida na tubulação. Há de vir um redesenho das margens e desativação das Marginais (a serem substituídas por sistemas de transporte público de alta capacidade). Infelizmente, redesenhar rios da cidade significa mudar traçado viário. E mudar o traçado das ruas significa mexer na predominância do transporte individual. As ocupações das várzeas também hão ser desapropriadas (pelo simples motivo que nunca deveriam ter ido para lá, espremeram o leito). Tudo isso demanda projeto, planejamento e não pode ser feito de um dia para o outro. É caro? Muito. Mas quanto custa um dia de enchente em São Paulo, sem nenhuma atividade econômica? Qual é o verdadeiro custo econômico desse desabastecimento? E quanto custa viver em uma cidade sem lazer, onde os rios são esgotos a céu aberto? Quanto custa pessoas viverem com pés nos córregos poluídos? Para a saúde pública, para toda a economia da cidade? A cidade do futuro é uma continuação dos projetos ideológicos do passado, com os seus rios subjugados aos carros, a especulação financeira e as empresas privadas que detém o controle da exploração de nossos recursos naturais? Qual futuro? Fim. Gabriel Kogan, 09/11/2014

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