A História das Ruas Contra os Rios em SP

11fev15
saturnino de brito - sp

Projeto de Saturnino de Brito para o Rio Tietê em São Paulo, 1926. Na planta superior, o desenho mostra a então configuração do Rio Tietê. A segunda planta é a proposta de Saturnino, onde a hachura verde escura representa áreas a serem urbanizadas. No desenho inferior, o engenheiro representa diferentes cortes transversais do rio.

Em 1924, o engenheiro sanitarista Saturnino de Brito foi contratado pelo então prefeito de SP, Firmiano Pinto, para fazer um estudo para o Rio Tietê, um rio meândrico a serpentear pelas várzeas da cidade. Havia duas preocupações concretas – antagônicas, mas correlacionadas: (1) as enchentes que fustigavam os moradores das planícies aluviais e impediam a valorização dos terrenos das margens; e (2) os problemas com abastecimento que viriam a assolar a cidade, em breve, com 1 milhão de habitantes. Além disso, o carro começava a dominar o desenho das cidades e os próprios rios se tornariam suporte para as avenidas já que a topografia dos vales e planícies era propícia para largas autopistas de alta velocidade.

O experiente Saturnino – projetista dos canais de Santos – faz um projeto considerando os usos integrados da água (abastecimento, transporte, saneamento, energia, lazer etc). Mas ele incorpora também demandas ideológicas surgidas poucos anos antes: a criação de Avenidas Marginais ao longo do curso d’água e a necessidade de valorizar os terrenos lindeiros, até então destinados para as populações pobres que conviviam com enchentes anuais. De qualquer forma, ainda que muito longe de ser um herói para os rios de São Paulo, Saturnino é generoso com as águas e propõe uma retificação do Rio Tietê deixando-o com uma secção de 90 a 120 metros (imagem). Nas margens haveria parques com 30 metros de largura e avenidas, de cada lado cada, com 40 metros. Além disso, o engenheiro propõe estações de tratamento de esgoto e lagos para lazer e acumulação de água de enchentes em fozes dos rios, como no Tamanduateí.

O que está no centro do desenho de Saturnino são as águas urbanas. Mas o projeto dele não chega a ser executado, sem antes ser redesenhado em 1929 por outros dois engenheiro, muito ligados a política e interesses industriais: Ulhôa Cintra e Prestes Maia. A dupla transfere o cerne do projeto urbano; saem os rios e entram os carros. O novo desenho estreita o Tietê para 70 metros, retira os grandes lagos, amplia a importância das avenidas marginais, esquece das estações de tratamento e parques lineares. Mais do que isso, o Tietê é inserido dentro de um projeto urbano de grandes avenidas, que se sobrepõe aos mais importantes rios de São Paulo. Esse novo projeto, se comparado com o de Saturnino, é bom para o automóvel e ruim para as águas urbanas. As avenidas carcomeram o espaço (e a importância) dos rios.

Com o Plano de Avenidas, Ulhôa Cintra e Prestes Maia estabelecem o grande paradigma de ocupação de São Paulo: valorização do transporte rodoviário individual, valorização imobiliária de várzeas, estreitamento dos rios por grandes avenidas, negligência de sistemas urbanísticos hídricos. Se queremos recuperar os rios de São Paulo precisamos entender a intrínseca relação criada entre avenidas e rios por aqui, em que o primeiro prospera em detrimento ao segundo.

Não é possível realmente começar a resolver a crise hídrica sem redesenhar os rios e as margens, e para isso temos que livrar os espaços hoje tomados pelos carros. No lugar entram parques, pequenas estações de tratamento, canais laterais coletores de esgoto e um leito maior para os próprios rios. Em outras palavras, existe uma relação indissociável entre a crise no transporte e nas águas urbanas. Em outras palavras ainda, não devolveremos a dignidade aos rios se não construirmos transporte público e desativarmos as grandes avenidas. Olhemos para os anos 20.

Gabriel Kogan, 11/02/2015

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One Response to “A História das Ruas Contra os Rios em SP”

  1. 1 Muriel Pokk

    Gosto muito de ler as suas crônicas. abraçosMuriel

    Date: Thu, 12 Feb 2015 01:25:38 +0000 To: mpokk@hotmail.com


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