Urbanismo tático, estágio avançado do urbanismo neoliberal

22mar16

urbano

Arquitetos, ativistas e pensadores das cidades se ocupam hoje com a autoprodução dos espaços públicos como prática emergente do urbanismo; mas – vamos falar sobre economia política – como essa atuação se insere no desenvolvimento capitalista das cidades?

As diferentes nomenclaturas (algumas com ares subversivos como urbanismo tático e guerrilha urbana) designam sedutoras práticas participativas e comunitárias de construção de estruturas leves com intuito de fomentar usos dos espaços públicos. Trata-se de uma redenção da cidade aos seus moradores ou do próprio canto neoliberal da sereia em forma de paletes de madeira?

Em 2004, o sociólogo brasileiro Francisco de Oliveira, analisando a questão habitacional do Brasil, questionou as atuações institucionalizadas de mutirões na construção civil no país[1]. O sociólogo mirou a dimensão econômica dessas ações, chamando a atenção para o rebaixamento do custo de reprodução da força de trabalho por meio do uso da mão de obra autogerida.

Em outras palavras, o Estado e os industriais reduziriam seus custos de produção de habitação repassando a responsabilidade pela mão de obra da construção (ou gestão do projeto) para os próprios moradores[2]. Estado mínimo, exploração máxima. Oliveira intitula o texto “O vício da virtude”, mas com um pouco mais de moral religiosa e menos cupinchagem poderia bem tê-lo chamado de “De boas intenções o inferno está cheio”.

O urbanismo tático é a própria autogestão e autoprodução, não mais da construção do espaço privado, mas do espaço público, onde a as contradições apontadas por Francisco de Oliveira se multiplicam, sobretudo, por não estarmos falando mais de uma questão urgente e de primeiríssima necessidade como a moradia.

O atual estágio do desenvolvimento capitalista das cidades assiste a emergência desse urbanismo tático de forma eufórica, como alternativa da inviabilidade do Estado em gerir seus serviços e bens, como suprassumo do neoliberalismo materializado em produção descentralizada da cidade. O custo de produção do espaço público está se externalizando.

As prefeituras são parte do espiral de débito público que sustenta a economia neoliberal. A palavra de ordem contemporânea das municipalidades é “reduzir gastos”. E dentro dessa lógica o custo de operação e manutenção dos espaços públicos representam porcentagens significativas[3].

Para olhos políticos desatentos, esses custos são passíveis de serem suprimidos ou drasticamente reduzidos. Melhor: externalizados para outros entes que vão arcar com as despesas. O Estado então se ausenta de sua responsabilidade sobre o espaço público, o próprio local da política. Estratégias de privatização dos bens públicos ou do próprio urbanismo tático caem aqui como uma luva.

Recentemente, a prefeitura de Paris da “esquerda” de Anne Hidalgo realizou o concurso Reinventer Paris, no qual disponibilizou 23 propriedades no centro da cidade para propostas financeiras e projetuais formuladas por consórcios compostos por arquitetos, técnicos e investidores.

Por trás das intenções de promover a nova economia com FabLabs, jardins comunitários e polos de criatividade urbana está a incapacidade da municipalidade de Paris não apenas de fazer novos investimentos públicos como também de manter as propriedades existentes. Projetos que requisitavam verbas da prefeitura eram considerados cartas fora do baralho; tudo deveria vir dos investidores privados, a arcar com os custos sobre as áreas. No Reinventer Paris, o Estado de não se eximiu totalmente de políticas de construção do espaço público, mas fez isso – de forma contraditória – privatizando bens[4].

O urbanismo tático é um estágio ainda mais sofisticado desse urbanismo neoliberal. Sem nenhum controle estatal sobre a qualidade e o objetivo dos espaços públicos, a autoprodução do espaço substitui a figura das empresas privadas pela “comunidade” ou indivíduos –ideologicamente difundidos como propositores do espaço público, mas que se mostram antes vítimas da externalização de custos da municipalidade endividada.

Portanto, não apenas o Estado se exime de investimentos e reduz seu tamanho (lembrem-se, Estado mínimo é um dos pilares do neoliberalismo) como também faz isso com total desregulamentação (outro pilar): o projeto em rede dá lugar a decisões separadas, sem a dimensão urbana, de pequenos espaços por grupos organizados dispersos.

Quando nos depararmos com intervenções desse tipo, seja no Largo da Batata em São Paulo ou em jardins comunitários em Nova York, é fundamental a pergunta: de onde vem o capital para essas atuações? A influência das empresas privadas reaparece no urbanismo tático de forma indireta, como organizadoras das “comunidades” ou como patrocinadoras das intervenções nos lugares que mais as interessam como marca. Mas, frequentemente, o capital pelas intervenções vem dos próprios cidadãos, que colocam fundos individuais nesses projetos “idealistas”, em uma externalização direta de custos.

A precariedade da estrutura institucional e financeira dessas ações se reflete na própria precária qualidade funcional e estética dos espaços construídos. Mesmo os materiais usados, por não virem de investimentos poderosos da máquina estatal (em teoria, a mais interessada na perenidade das intervenções), não são feitos para durar, não são suficientemente robustos. Mobiliário urbano implantado no Largo da Batata[5] por ações de urbanismo tático se mostraram, por exemplo, deteriorados poucos meses depois da instalação.

Por esse e outros motivos, o professor da Architectural Association de Londres, Pier Vitorio Aurelli, critica práticas análogas em um texto que traz no título a expressão “Architecture in the Age of Precarity” (arquitetura na era da precariedade). O autor adverte precisamente: “Fazer mais com menos é exatamente o que o capital demanda de nós: mais produtividade com menos bem estar, mais criatividade com menos segurança social, porque criatividade se torna mais produtividade quando nossas condições “dadas” crescem de forma mais intensa e instável”.

Por fim, ainda no campo da economia política, não podemos ignorar que o urbanismo tático tem sido sistematicamente desafiado pela palavra da moda dos estudos urbanos, gentrificação[6]. Em essência, essas ações não se distinguem do urbanismo tradicional: quanto mais capital é investido em determinada área, maior a valorização fundiária da região. A vantagem do urbanismo tático aqui é sua capilaridade e seu retorno eficiente para a gentrificação (por meio de atenção midiática ou “apoderamento” das pessoas com o lugar, “fazer mais com menos”).

Construir seu próprio espaço público; plantar uma horta coletiva em um terreno público antes trancado e difundir a ideia em seminários internacionais; produzir o próprio mobiliário urbano e levar a discussão para escolas de arquitetura. Todos esses são anseios a primeira vista animadores, imbuídos de sentimentos de mudança, mas a máquina do neoliberalismo é capaz de criar o que chamamos – precisamente – de ideologias (ilusões que privilegiam os detentores dos meios de reprodução do capital). Não há ingenuidade: de boas intenções até mesmo a cidade contemporânea está cheia.

Gabriel Kogan, 22/03/2016

 

[1] http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002006000100005#back1

[2] Se por um lado o mutirão pode contribuir para a desalienação do processo produtivo da casa e resolver emergencialmente a questão da moradia para os envolvidos; por outro, também acentua a exploração do trabalho ao corroer as horas produtivas do trabalhador. Além disso, espreme ainda mais seu exíguo tempo de lazer. Hora de lazer, hora de trabalhar no mutirão.

[3] Na cidade de São Paulo, por exemplo, as secretarias de “Coordenação das Subprefeituras”, “Esportes, Lazer e Recreação”, “Verde e do Meio Ambiente” e “Desenvolvimento Urbano” – responsáveis pelo planejamento urbano da cidade e construção/manutenção de espaços públicos – respondem por 14% do orçamento municipal em 2016 (ou mais de R$3 bilhões) . Exclui-se desse cálculo a “Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras” que faz, eventualmente, obras de espaços públicos. Por outro lado, parte da verba das subprefeituras, aqui embutidas integralmente, é destacada também para outros fins como a manutenção de vias e infraestrutura, além de aprovações técnicas.

[4] A regulação se realiza por meio de concurso público que julga tanto a melhor proposta financeira do consórcio (compra do terreno etc.) como também a proposta conceitual e arquitetônica.

[5] Nota-se que ações populares autônomas no mesmo lugar, como aulas abertas de forró não são alardeados como transformadores do espaço da mesma maneira, apesar de reunir números maiores de pessoas. Nota-se também que esse tipo de transformação usa o espaço público como suporte temporário de encontro, sem qualquer construção, há apenas a própria presença dos indivíduos no espaço público.

[6] Processo de expulsão de populações pobres e tradicionais de determinados tecidos urbanos em decorrência da valorização imobiliária gerada usualmente por investimentos – públicos ou privados – locais.

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One Response to “Urbanismo tático, estágio avançado do urbanismo neoliberal”

  1. Gostei muito do texto de Gabriel Kogan. Trabalho dando aula sobre Urbanismo Tático e com certeza esse será um texto em pauta! Abraço.


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