Paulo Mendes da Rocha: as casas que decantaram até a essência
Casa Butantã, 1964. Planta primeiro pavimento.
Entre 1964 e 1970, Paulo Mendes da Rocha construiu quatro casas que questionavam a própria ideia de habitar. Casas Mendes da Rocha, Luiz Gonzaga Cruz Secco, Mario Masetti e Fernando Millan. As obras exploravam radicalmente o programa do espaço habitacional como desdobramento da cidade e da rua. O arquiteto sintetizaria mais tarde essa investigação: “Não existe um espaço privado, mas graus diferentes de espaço público”.
No projeto de sua residência no bairro do Butantã, em 1964, quatro pilares (sempre quatro pilares) arrancam um volume de concreto bruto do chão. A força dessa elevação é tal que o terreno também se ergue para conformar uma nova topografia – procedimento depois recorrente em suas obras, a própria ideia de construir uma segunda natureza. A geografia construída do terreno conforma também uma abertura no talude (a entrada) e o térreo se transforma em uma praça coberta em contínua relação com a calçada. Esses pequenos morros aludem a um dique para contensão das águas do Rio Pinheiros em dias de enchentes, quando transbordam para aquelas regiões de várzeas. Os quatro pilares viram palafitas.
No andar superior, as paredes são apenas esboços de separação programática dos ambientes. Não chegam até o teto, tem frestas, mesmo nos quartos e banheiros, vazando odores e sons. O espaço habitacional é tratado então com um lugar único, onde não há lugar para pudores privados. A arquitetura se torna um elemento ativo de questionamento dos padrões de comportamento familiares burgueses. Para dentro da casa se transfere as formas de relacionamento próprias dos espaços públicos, como se o arquiteto reafirmasse o carácter urbano do problema habitacional e também lançasse luz para as origens históricas disso.
Casa Butantã, 1964. Corte.
No terreno vizinho a sua residência, para a Casa Luiz Gonzaga Cruz Secco, Paulo repete a mesma solução, exprimindo a dimensão prototípica dessa arquitetura. A casa deve e pode ser repetida, não é uma solução única para um terreno único. Pelo contrário, esses projetos nada mais são que o primeiro andar de uma torre habitacional, no qual a planta do primeiro pavimentos seria empilhada.
Na Casa Masetti (1967), no bairro do Pacaembu, o traçado da rua continua para dentro do terreno. A curva do viário se bifurca para dentro do lote e cria uma verdadeira esquina urbana. Os muros entre o interior e o exterior, entre o público e o privado, entre o individual e o coletivo, são derrubados. Para reafirmar essa continuidade entre o terreno e a rua, o arquiteto utiliza um piso asfáltico no térreo. Esse piso é livre, como pilotis corbusianos, novamente erguidos por apenas quatro apoios – o mais simples, o mais elementar. Surge uma estranha e escura praça. No segundo andar, não há corredores: o programa é articulado pela sala, para onde se abrem as portas do quarto. Não há espaços de mediação, vestíbulos que separem as áreas privadas e coletivas. Novamente o espaço é tratado de forma contínua.
Casa Masetti, 1967. Planta térreo e primeiro pavimento.
A Casa Millan (1970) parece ainda um passo mais radical nesses questionamentos de Paulo sobre as limitações da vida privada. Distribuída em dois andares, a sala é uma espécie de palco central de um teatro de arena, circundado pelos quartos. A vida urbana se desdobra na sala, de forma monumental e cinematográfica. A diluição da individualidade e dos costumes burgueses ganha assim dimensão teatral, performática no dia-a-dia. Com a Casa Millan, Paulo reafirma que as relações privadas serão alteradas e isso será feito de uma maneira monumental.
Apesar da divisão entre dormitórios e o estar em diferentes andares, assim como na Masetti e na Casa Butantã, os quartos não tem privacidade e nem mesmo os banheiros, que originalmente tinham janelas dando para a cozinha no primeiro andar, em uma espécie de átrio dos fundos. A própria iluminação natural da sala vem de um rompimento da laje de concreto da cobertura, filtrada pelas sequências de vigas de concreto a conformar uma pérgula cênica. No centro da sala, uma escada escultórica evidencia a espacialidade do pé direito duplo. Esse elemento e a própria parede curva da sala demonstra o desprendimento do arquiteto em contemplar valores rígidos do racionalismo. Traços de Niemeyer escorrem por lá.
Casa Millan, 1970. Planta térreo e primeiro pavimento.
Dissecando o modo de vida das habitações, Paulo consegue decantar a arquitetura residencial para aquilo que é mais essencial. Caem elementos barrocos, as ornamentações arquitetônicas e comportamentais. Sobra apenas uma estrutura de concreto pura, a cumprir sua função de abrigo, de habitar. Mas um abrigo que se afasta da noção de refúgio e aconchego. É um lugar de desconforto, de desafios sobre os padrões contemporâneos. O lugar privado também se torna um espaço vivo onde a rotina é coletiva, aliás, onde o próprio conceito de rotina parece se diluir; onde não há espaço para a privacidade, para o individualismo e para os pudores burgueses.
Com isso, Paulo parece sugerir um retorno a ideais pré-modernos, quando a divisão entre o quarto privado e as áreas coletivas ainda não havia sido formatado pelos costumes vigentes. Comia-se do mesmo prato, habitava-se o mesmo lugar. Isso é mais essencial para a vida. Um teto, que na sua existência e na relação política entre os moradores possa também construir uma cidade. Há uma contradição aí, uma dialética que expõe a própria crítica sobre os sistemas de produção: sendo radicalmente moderno, Paulo acaba por formular um modo de vida pré-moderno em seus projetos, isso é, pré-burguês.
Essa contradição não seria a mesma que os moradores dessa casa são desafiados no cotidiano? Como habitar um lugar que pertence aos costumes de outro tempo? Como um projeto pode romper os comportamentos burgueses dominantes sendo ele mesmo habitado e inserido nesse contexto, tendo emergido desse ambiente? Como questionar a ideologia sendo você mesmo parte dela? Parece uma relação dialética hegeliana tradicional. Esses espaços são transformadores, mas podem esbarrar na própria impossibilidade de sua realização contemporânea, na sua impossibilidade, sobretudo, de universalização. A força desses quatro projetos (construídos!) de Paulo está aí, no embate – a primeira vista insolúvel – entre a arquitetura e os padrões de nossos tempos.
Gabriel Kogan, 06.05.2016
Casa Butantã, 1964. Foto quarto e banheiro.
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